São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Melodrama da esquerda

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Por Que Combatemos" é um exemplo típico da retórica revolucionária clássica. Não lhe falta nenhum dos componentes elementares desse estilo consagrado na esquerda (desde pelo menos o "Manifesto Comunista") por um século e meio de incessante repetição. Segundo o "subcomandante Marcos", seu movimento não é apenas uma guerrilhazinha latino-americana entre tantas, sediada num canto perdido de um país secundário e lutando por alguns alqueires de terra, por algumas verbas federais ou por alguns "greencards" a mais. Ela é, isto sim, a ponta-de-lança da derradeira batalha entre as forças do Bem e as do Mal, ou seja, a Quarta -e última- Guerra Mundial.
Aparentemente todos os panfletos e manifestos, tanto de direita quanto de esquerda, são iguais, descendem diretamente da literatura apocalíptica dos primórdios da era cristã e se resumem numa incansável glossolalia sem relação direta com a realidade sobre a qual fazem de conta que falam. Seria, no entanto, injusto não levá-los a sério e ler apenas suas declarações explícitas, pois faz tempo que, em muitos manifestos, o sentido que importa não é, obviamente, o manifesto, mas o implícito. É verdade que, no século passado, a retórica que os define pertencia a grupelhos delirantes que se formavam e se desfaziam à margem da política real e não expressava nada além da megalomania compensatória da falta absoluta de poder. Acontece que, em 1917, um desses grupelhos chegou ao poder e, desde então, o que era um estilo marginal tornou-se, em boa parte do planeta e durante quase todo o presente século, o discurso oficial.
Foi a partir desse momento que a desconversa intercambiável da direita e da esquerda realmente se bifurcou. Antes disso, as mesmas imagens, metáforas, grandiloquência etc. transitavam tranquilamente de um extremo ao outro do espectro político.
Depois da Revolução de Outubro, porém, a forma vazia da retórica revolucionária começou a ganhar sentidos inimaginavelmente sutis. Enquanto, na direita, sua histeria aumentava, mas continuava relativamente transparente (quem quer que tenha posto em dúvida a sinceridade do que Hitler propunha em seu "Mein Kampf" deu-se muito, muito mal), ela se transformou, entre as esquerdas, numa refinada linguagem cifrada.
Seguindo essa tradição, o arrazoado do subcomandante Marcos não deve ser somente mais um "samba do crioulo doido" ou algo parecido. Na falta da chave decodificadora, no entanto, só resta especular sobre os significados ocultos nas dobras da retórica convencional. Há uma disputa interna ocorrendo entre os zapatistas? O subcomandante estará se preparando para isolar uma facção rival e expurgar um antigo companheiro, ou anunciando uma aliança inesperada com algum inimigo de ontem? É aos especialistas que cabe responder.
Ainda assim, algumas coisas em "Por Que Combatemos" podem ser lidas sem maiores dificuldades. O texto continua a choradeira dos movimentos para os quais o fim da URSS foi de fato uma derrota terrível: a perda do maior aliado. Ele amalgama ou confunde num único e imenso adversário entidades em princípio distintas, como neoliberalismo, globalização, instituições financeiras, Estados Unidos, "american way of life", apostando (corretamente) na virtual inexistência de alguém que não deteste ao menos uma delas. E, sobretudo, expressa a necessidade de novas alianças. São três os alvos de sua campanha, que é também um pedido de socorro: a facção "multicultural" ou "politicamente correta" do liberalismo norte-americano; os neonacionalismos em geral; e todas as tendências européias que, por alguma razão corporativista qualquer, opõem-se à unificação econômica do continente.
Muito desse manifesto deve soar como música para a parcela da intelectualidade francesa que, surpreendida pela greve de fins de 95, tentou pegar uma carona de última hora num evento que tinha mais de caótico do que de ideológico. Esse talvez seja o grupo preferencialmente bajulado pelo manifesto. Não que os sofisticados parisienses não desdenhem o primarismo teórico do mexicano ou de seu(s) "ghostwriter(s)", mas abraçar (como Régis Debray fez com Che) uma nova revolução no Terceiro Mundo, que, embora primitiva, não se envergonha de portar, por assim dizer, a "velha chama", pode ter lá seus atrativos para novos filósofos ociosos.
O texto em si nada tem de excepcional, mas está à altura de um objetivo desses. Sua única falha relativamente grave é a conclusão "poética". Mais do que ao bolero hispano-americano ou ao dramalhão mexicano, o "lirismo" envolvido remete especificamente ao tom "disney de esquerda", que, desenvolvido em Cuba e celebrizado pelo "Unicórnio Azul", de Sílvio Rodríguez, não parece mais agradar a quem quer que seja. Se "la Revolución" para a qual aponta o manifesto evoca até uma certa nostalgia -leva o leitor a lembrar uma época em que as escolhas eram mais simples e definitivas-, seu final chega a dar saudades de gente como Lênin, que, atendo-se ao economês, não arriscava nenhum grande vôo poético.

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