São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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A utopia zapatista

EMANUEL NERI
DA REPORTAGEM LOCAL

Na reunião internacional do zapatismo, em abril de 1996, na selva mexicana de Chiapas, chefes do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) revelaram um dado surpreendente. Sem que o governo percebesse, prepararam-se para a guerra por quase dez anos.
Estado mais pobre do México, Chiapas tornou-se internacionalmente conhecido no dia 1º de janeiro de 1994, quando os zapatistas ocuparam militarmente cinco de suas cidades.
Mais do que a surpresa, a invasão zapatista revela o desprezo oficial por aquela região. País nenhum do mundo se deixaria surpreender por um movimento armado que passa dez anos se preparando para enfrentar o governo.
O governo mexicano ficou sabendo da existência do EZLN poucos meses antes da invasão de Chiapas. Em maio de 1993, houve a primeira escaramuça entre guerrilheiros e Exército mexicano. Mas preferiu ocultar a notícia.
Não queria prejudicar a assinatura do Nafta, o tratado de livre comércio entre México, Estados Unidos e Canadá. O México já se imaginava integrante do Primeiro Mundo. A guerrilha levou de volta o país ao pior dos mundos.
A região ocupada pelos zapatistas é absolutamente miserável. Chiapas tem 3,2 milhões de habitantes. Há pelo menos 1 milhão de indígenas, de seis etnias diferentes. Parte dessa população vivia totalmente esquecida. Pelo menos 500 mil indígenas chiapanecos são analfabetos -a maioria não fala nem sequer o idioma oficial do país, o espanhol. Na saúde, os números são péssimos. A tuberculose atinge 70% da população de algumas aldeias zapatistas.
O descaso social fez com que o zapatismo -nome que vem do líder revolucionário Emiliano Zapata (1879?-1919)- encontrasse terreno fértil para crescer. Acredita-se que o EZLN conta com 20 mil homens armados. Mas sua base de atuação pode chegar a 1 milhão de pessoas. A maior força do zapatismo está na enorme rede de apoio que o movimento tem em todo o mundo. Sem isso, os militares mexicanos já teriam devastado suas comunidades. O poder bélico do EZLN chega a ser ridículo.
Grande parte de seus guerrilheiros é armada com espingardas artesanais, de madeira. Para o zapatismo, a idéia vale mais do que as armas. "Mandar, obedecendo" -é um de seus principais lemas.
O escritor e poeta mexicano Oscar Oliva, da comissão de mediação entre guerrilheiros e governo, acha que o zapatismo retoma idéias da Revolução Francesa.
"Os mais humilhados e explorados são os que têm mais possibilidades de transformar a sociedade", diz. Ele não vê semelhanças entre o zapatismo e os movimentos revolucionários ortodoxos.
Para Oliva, não se trata de um movimento inspirado nos focos guerrilheiros marxista-leninistas dos anos 60 e 70. "Não é uma luta de uma classe social contra outra classe social. Eles não falam de socialismo. Falam de democracia."
Oliva acredita que o zapatismo criou uma nova utopia, que fala de dignidade, fraternidade, justiça e democracia. "Foi uma agitação das consciências", afirma.
Seu estilo de fazer política é peculiar. Não pretende chegar ao poder e não pensa em disputar eleições. O zapatismo também agrada pela abrangência de suas bandeiras. Cultura, negros, homossexualidade, feminismo -tudo ferve no seu caldeirão de debates. As mulheres representam 35% do efetivo de suas tropas -muitas ocupam cargos de comando no EZLN.
O movimento é comandado pelo Comitê Clandestino Revolucionário Indígena. O subcomandante Marcos é apenas a face visível do zapatismo. A exemplo de todos os zapatistas, Marcos também cobre o rosto com capuz. Ficam de fora só os olhos, que são claros.
Apesar do fascínio que desperta, Marcos desempenha seu papel sem arrogância. Detesta qualquer culto à imagem e à autoridade. "Não há nada mais antidemocrático, anticivil, antitudo que um Exército onde um chefe dá ordens e um grupo de pessoas obedece."
Marcos é o principal ideólogo do EZLN. Passam por ele todas as teses políticas e propostas do zapatismo. Versões dizem que ele é um ex-professor de sociologia de uma universidade do norte do México.
Cercado de grande esquema de segurança, vive em um acampamento guerrilheiro próximo à aldeia zapatista de La Realidad, na selva de Chiapas. Vestido com uniforme verde-oliva e fumando um cachimbo, sempre que aparece está montado em um cavalo.
Marcos já foi vítima de todo o tipo de especulação. A última é que foi demitido de um bar de San Francisco (EUA) por ser gay. Foi o suficiente para um jornal mexicano explorar isso em manchete: "Um maricas revolucionário".
Marcos e os zapatistas não se abalaram. "Marcos é um gay em San Francisco, um negro na África do Sul, um palestino em Israel, um judeu na Alemanha, um pacifista na Bósnia, um repórter escrevendo histórias que enchem as páginas negras dos jornais...", respondeu o EZLN, em manifesto.

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