São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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'A tecnologia ameaça a liberdade'

UNABOMBER

Um progresso tecnológico que pareça não ameaçar a liberdade muitas vezes acaba por ameaçá-la muito seriamente. Consideremos, por exemplo, os transportes motorizados. Antigamente uma pessoa podia ir a pé aonde lhe apetecesse, no seu próprio ritmo, sem ter de cumprir quaisquer regras de trânsito e sem depender duma infra-estrutura técnica.
Quando os veículos motorizados foram introduzidos, pensou-se que iriam aumentar a liberdade do homem. Os peões não perderiam a sua liberdade, ninguém era obrigado a comprar carro e quem o fizesse poderia deslocar-se mais longe e mais depressa do que os peões. Mas a introdução da circulação do automóvel em breve transformou a sociedade de tal forma que hoje limita em grande parte a liberdade de locomoção do homem. Ao aumentar o número de automóveis em circulação, tornou-se necessário regulamentar amplamente a sua utilização.
De automóvel, especialmente em áreas de elevada densidade populacional, não se pode ir aonde se quer e à velocidade de cada um. O movimento de cada um é determinado pelo fluxo do tráfego e por várias regras de trânsito.
Ficamos assim condicionados por diversas obrigações: exigência de carta de condução, exame de condução, renovação do registro, seguro do automóvel, manutenção exigida por questões de segurança, pagamentos mensais para amortizar o preço de compra do veículo. Por outro lado, o uso de transporte motorizado deixou de ser facultativo, tornando-se "obrigatório".
Desde a introdução dos transportes motorizados, o plano urbanístico das nossas cidades foi de tal forma transformado que a maioria das pessoas deixou de viver a uma distância facilmente transponível a pé do seu local de trabalho, das zonas comerciais e de lazer, sendo, assim, constrangidas a recorrer ao automóvel. Ou, então, vêem-se obrigadas a usar transportes públicos, passando a dominar ainda menos os seus próprios movimentos do que quando conduzem um carro.
Até a liberdade de quem se desloca a pé está agora muito mais limitada. Na cidade é continuamente forçoso parar e esperar pelos sinais luminosos destinados a servir o tráfego do automóvel (...) (note-se o aspecto importante que ilustramos no caso dos transportes motorizados: sempre que um novo produto tecnológico é introduzido como uma opção, que o indivíduo pode aceitar ou não conforme melhor entender, esse produto "não vai permanecer" necessariamente facultativo.
Em muitos casos a nova tecnologia altera a sociedade de tal forma que as pessoas acabam por se sentir "obrigadas" a usá-la).
Ao mesmo tempo que o progresso tecnológico "como um todo" continua a reduzir a nossa esfera de liberdade, qualquer novo avanço técnico "considerado isoladamente" parece ser desejável. Eletricidade, canalização interior, telecomunicações rápidas... que objeções poderíamos nós opor a qualquer uma destas coisas ou a qualquer outro dos inúmeros progressos técnicos que caracterizam a sociedade contemporânea?
Teria sido absurdo resistir à introdução do telefone, por exemplo, que oferecia imensas vantagens e nenhum inconveniente. No entanto, todos estes avanços da técnica encarados em conjunto criaram um mundo onde o destino do cidadão comum já não está nas suas próprias mãos ou nas dos seus vizinhos ou amigos, mas nas dos políticos, das chefias empresariais e dos técnicos e burocratas anônimos, sobre os quais, como indivíduo, não tem nenhuma influência.
O mesmo processo continuará no futuro. Veja-se a engenharia genética, por exemplo. Poucas pessoas resistiriam à introdução de uma técnica genética que eliminasse uma doença hereditária. Não causa mal aparente e evita muito sofrimento.
Mesmo assim, um grande número de melhoramentos genéticos encarados como um todo farão do ser humano um produto de engenharia em vez de uma livre criação do acaso (ou de Deus, ou do que quer que seja, consoante a crença de cada um).

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