São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Lágrimas de crocodilo, soluções de avestruz

OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO

Depois de implicar os meios de comunicação num debate de alcance internacional, em que eles foram ao mesmo tempo a parte acusada e o veículo da acusação, o episódio Diana deixou um saldo de convicções líquidas e certas. Nenhuma pessoa de bom senso poderia discordar delas, todo editor se declara empenhado, agora mais do que nunca, em torná-las realidade.
Uma dessas convicções estabelece que a imprensa deve distinguir o interesse público do interesse do público. Aquele compreende os assuntos que dizem respeito à comunidade, seus problemas e valores, seu futuro; este último expressa, sob a forma de fenômeno coletivo, o que não passa de bisbilhotice frívola ou mórbida. Outra convicção é que a imprensa deve traçar uma divisória nítida entre a vida pública e a vida pessoal dos personagens da notícia, em paralelo com a separação proposta no primeiro ponto. Uma terceira garante que a imprensa deve contrapor-se às pressões de mercado porque elas conduzem a uma manipulação crescente da notícia e do público.
Nenhuma dessas convicções é nova, embora tenham assumido, com a morte brutal da princesa, ares de verdade inadiável. Assim como antigamente se falava em indústria do anticomunismo, surgiu uma indústria do anti-sensacionalismo, cheia de compunção e fúria, empenhada, como a outra, numa cruzada purificadora. Fazendo juz ao estereótipo de seu país, a imprensa britânica protagonizou as cenas de maior farisaísmo, mas uma dúvida fecunda se instalou, bem ou mal, em cada meio de comunicação no mundo inteiro: "O que estamos fazendo está certo?".
Como o estado de dúvida é desconfortável, a tendência tem sido buscar segurança naquelas três convicções, ou em variantes suas, desengavetadas às pressas. Sem prejuízo dos méritos da discussão levantada pelo caso Diana (e pretendendo, ao contrário, estendê-la ainda), este artigo visa a argumentar que convicções como as descritas acima não são ponto pacífico, que dificilmente sobrevivem intactas a um exame crítico e que cada uma delas abriga uma falácia, para não dizer uma mentira.
Separar o joio do trigo, o interesse público e o interesse do público, faz todo sentido à primeira vista, até nos lembrarmos de que somente jornais como o antigo "Pravda" ou o "Granma", a publicação oficial do regime cubano, respeitam uma tal regra à risca. Os jornais que alegam adotá-la deveriam começar por suprimir liminarmente suas seções de esporte, de variedades, de turismo, de culinária etc., para se ater à economia política, à cultura "séria" e à... metereologia, como fazem, aliás, os diários nos regimes de partido único. Ou seja, trata-se de uma prescrição, sem trocadilhos, para inglês ver, que ninguém -dentro ou fora das redações- está disposto a aceitar a menos que compelido a tanto.
Distinguir a vida pública e a vida privada das pessoas que frequentam o noticiário parece igualmente sensato. Mas a sociedade contemporânea embaralhou os dois papéis, convertendo essa separação, que já tinha muito de formal, numa abstração muitas vezes sem fundamento. A vida pessoal de Madonna, por exemplo, tem presença e efeito tão públicos quanto decisões do Banco Central: influencia comportamentos, determina atitudes, modifica mentalidades. Como ícone, Madonna irradia sentido em todas as direções e não é um jogo de palavras dizer que no seu caso, embora extremo, vida pública e particular se confundem num mesmo contínuo, com o foco da irradiação localizado exatamente na fronteira fictícia entre ambas.
O melhor que se pode esperar do jornalismo é que ele configure o retrato de uma época tal como percebida pelos contemporâneos, fonte primária do trabalho, menos efêmero, do historiador. Não por acaso, a historiografia atual é marcada pela história das mentalidades, em que prevalece a idéia de que a fachada dos negócios oficiais oculta a vida mais secreta e decisiva das sociedades: os costumes, as crenças, os padrões de consumo, os hábitos do dia-a-dia. O receituário privatista é provavelmente a manifestação mais restrita, econômica, de um movimento muito mais geral que desloca parcelas crescentes do poder público, organizatório ou repressivo, para o âmbito privado. Assim, temáticas e esferas de atuação tradicionalmente alheias ao debate público estão ingressando nele, ao passo que expulsam inquilinos mais antigos. Para o jornalismo, trabalhar hoje com as oposições convencionais entre público e privado seria equivalente a tentar resolver problemas de mecânica quântica usando as ferramentas da física de Newton.
O modelo contraposto ao da imprensa de mercado, a contrapelo da enorme democratização de acesso à informação que ela propicia, não parece capaz de superá-lo em termos práticos nem desejar fazê-lo em termos doutrinários, pois no fundo o que se propõe é uma volta atrás, um retorno ao modelo da imprensa oligárquica, em que os editores exerciam um poder discricionário maior que o de qualquer publicação sensacionalista (só que voltado não para o que o leitor "pode", mas para o que ele não "pode" saber), e em que o público era reduzido a uma minoria que tivesse suficiente "nível" para ler jornais.
É difícil estabelecer parâmetros fixos e gerais para balizar a atividade jornalística exatamente porque ela atua sobre fenômenos heterogêneos cuja particularidade se estende até o infinitesimal, na tentativa de capturar os acontecimentos em meio ao turbilhão ainda confuso de seu desenrolar. Recentemente, a imprensa brasileira dedicou grande destaque à cobertura de um incidente médico, ocorrido numa clínica de cirurgia plástica, que levou certa modelo famosa ao estado de coma, do qual felizmente veio a se recuperar. À primeira vista, assunto rigorosamente privado. No entanto, havia tanta mitologia implicada no incidente -o preço da fama, o culto ao corpo, os subterrâneos da moda, a estetização das aparências, a impunidade médica- que seria difícil ignorar a dimensão do interesse público do caso.
Mesmo a mais elementar das barreiras, aquela que ninguém coloca em dúvida -não se devem publicar imagens obviamente repulsivas ou horrendas, tais como corpos despedaçados-, não admite aplicação automática. Durante a Guerra do Golfo, por exemplo, uma agência de notícias divulgou, talvez por distração, a foto de um veículo de combate iraquiano incendiado por um disparo da coalizão ocidental; em primeiro plano via-se o corpo do tripulante, carbonizado. Era mais do que chocante. Publicada, porém, a imagem tinha alto conteúdo moral, ao "revelar" que também havia sofrimento do lado de lá e que a guerra, mesmo quando parece "limpa", é sempre um pesadelo indescritível.
Não se deve concluir que os problemas apontados pelos críticos da imprensa não existam e não sejam graves. Ao abalar as certezas instantâneas suscitadas pelo caso Diana, estamos longe de sugerir que não deveria haver normas, limites, padrões. O que pretendemos ressaltar é que as decisões jornalísticas são em grande medida situacionais, dependem do polígono de interesses e valores articulados em torno de cada caso. Todo parâmetro genérico terá de comportar um sem-número de exceções que terminam por desfigurá-lo. O importante é que as demandas do mercado, no mesmo passo em que forem atendidas, sejam colocadas em questão, submetidas às intempéries da controvérsia e da crítica, única maneira de obter uma evolução verdadeira no laço estrutural entre público e meios de comunicação.

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