São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Atração entre corpos estranhos

SUELY ROLNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chumbo, seda pura, lâmpadas, dedais, ninfetas, cobras, ímãs, tripas de mico, vastas cabeleiras, sinos agigantados, ossos, agulhas e por aí vai -o universo de Tunga.
Primeiro impacto diante da obra desse artista: convivem aqui pedaços de mundo que não costumam se encontrar, nem mesmo na esfera dita autônoma da arte. Atrações entre corpos minerais, vegetais, animais e humanos agitam uma exuberante sexualidade para além do antropomórfico.
Engano, no entanto, pensar que nessa lista de materiais insólitos, ou em sua igualmente insólita composição, residiria a originalidade e a força maior dessa obra. Ver seus trabalhos reunidos em retrospectiva leva a indagar-se por que esses materiais e não outros, por que e de que modo eles se juntam e o que se opera nessas miscigenações.
É que se trata de uma obra que nunca pára de sofrer hibridações. Ela é sempre passível de retornar e, a cada volta, torna-se outra. Às vezes são apenas pedaços de obra que se reatualizam em novas composições. Às vezes, obras inteiras. Às vezes elas ficam anos sem reaparecer. Às vezes reaparecem por ciclos, lunações. E entre os ciclos, elas hibernam. São obras de arte vivas, em infinita transfiguração.
Nada nessas obras é definitivo, nada nelas é neutro. Quando retornam, sempre num ambiente diferente daquele que as originou, é porque foram atraídas por elementos que ali vibram de modo especial e que irão se incorporar à sua química produzindo uma floração de novo tipo.
Nessa reatualização, é o próprio ambiente que se põe em obra. Tudo se transforma em matéria prima de um processo de criação, que inclui e trabalha o espaço, bem como o espectador e o próprio artista. O universo revela-se obra de arte, "work in process"; a arte revela-se vibração crítica do mundo.
Nada escapa a essa palpitação, nem mesmo uma retrospectiva, como é o caso da atual exposição de Tunga em Nova York: a nova vizinhança que se estabelece aqui entre as obras as amalgama de modo singular, provocando devires em cada uma delas e fazendo nascer outras. E ainda, a mesma retrospectiva em espaços, cidades ou países distintos será também ela infalivelmente distinta a cada vez e engendrará novas obras.
É o fio vital que alinhava os corpos, dependendo do que em cada um é afetável ou não pelo outro, dos efeitos de cada um sobre o outro. E é do desenho desta miríade de elementos entrecruzando-se que emerge o sentido. Quanto ao artista, ele é apenas o "propositor" de um protocolo de experimentação -lista de materiais e objetos, roteiro de operações e ainda, eventualmente, agentes humanos ou não de tais operações.
No entanto, o que advirá não é ele quem sabe e muito menos quem decide. O artista é um "experimentador ocasional", como diz Tunga, ele nem sequer tem como prever qual será o ponto ótimo de tensão entre os ingredientes heteróclitos que ali se reuniram, de modo que sua fricção seja fecunda -condição para que um mundo tome consistência, possa individuar-se e fazer-se obra. Grande arte é necessária para colocar-se à espera paciente desse ponto preciso. Muito humor e pouco drama. Mas nessa contínua repetição diferenciadora como circunscrever uma obra desse artista?
A obra de Tunga tem sempre uma dupla face. A mais óbvia, aquilo que se costuma chamar de "obra de arte" propriamente dita, constitui apenas sua face atual -efêmera sedimentação numa forma determinada, dos fluxos que paralelamente não param de agitá-la. Lado estático e cronificado da obra, onde ela pode ser apreendida como unidade, desde que lembremos que esta é sempre instável e não cessa de se desterritorializar.
Mas há também uma outra face, seu reverso: infinitas obras virtuais que podem engendrar-se em seus invisíveis amálgamas, cujas direções, expansão e ritmo são imprevisíveis. Lado dinâmico, cronogenético da obra.
Ou seja, Tunga opera uma virtualização da arte. Poder-se-ia cogitar que isto nada tem de original, pois que é próprio de toda arte. No entanto, na obra desse artista tal operação ganha visibilidade e relevo, constituindo-se talvez na principal questão que move seu trabalho, sua "fórmula", por assim dizer. Uma obra que, apesar da aparente solidez, é sempre ao mesmo tempo um composto híbrido em formação. Obra vibrátil, ela continua se fazendo em função da lista de afetos possíveis de cada material empregado.
Se existe um mistério nessa obra, ele está em sua incontornável virtualidade, da qual sempre nos esperam devires. O próprio mistério da vida enquanto energia criadora. Não se trata aqui de representar a vida: representações pura e simplesmente, por mais originais, tendem a ser inofensivas. Trata-se sim de colocar a vida em experimentação. É isso o que estranha: uma inegável força que, se deixarmos, nos arranca da mesmice e nos relança no processo. Uma força ética, pois afirma a potência de transfiguração da vida.
Assim, a obra deste artista, nunca está nem onde e nem como se espera. De fixo, ela não tem nem morada, nem contorno, nem nome. Uma obra que foge por todos os lados, que nunca se encerra em limites demarcáveis de uma vez por todas. Eterno retorno do outrar-se. É claro que se pode dizer que cada obra é uma e única, mas sempre e simultaneamente todas elas são atualizações de uma só e mesma obra, contínua, inesgotável, infinita. Obra virtual.
Essa linguagem própria da obra de Tunga, a qual implica em permanecer pulsando para além de suas sedimentações formais, dribla o autoritarismo do "establishment" da arte. Despista o monopólio da pulsão criadora, que ignora a maioria dos artistas e, àqueles poucos eleitos que ele reconhece e incorpora, tenta impor diretrizes de trabalho, reduzindo sua obra à condição de joguete de negociações comerciais e políticas.
Tunga contorna essas duas tristes alternativas que se colocam para o artista hoje: ele consegue manter a visibilidade pública de sua obra e, ao mesmo tempo, escapar dessa reserva autorizada onde a força da arte tende a ser confinada e o ato artístico mumificado.
Os trabalhos desse artista escapam sem parar e por isso mesmo são raros; e, quanto mais raros, mais demandados e mais valorizados. O curioso é que o modo como escapam é exatamente o mesmo que os faz impor-se nos domínios da arte, fortalecendo sua insubordinação e ampliando ainda mais a liberdade de invenção e incorporação de linguagens.
A obra de Tunga é uma zona franca de hibridações renovadas onde a criação, como dinamismo experimental e disruptivo da existência, é permanentemente reativada. "Flagrante ostensivo" da força geratriz. Uma generosa alegria emana dessa infinita instauração de paisagens.

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