São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Diana mergulhou na boca do lobo

PHILIPPE SOLLERS
ESPECIAL PARA "LE NOUVEL OBSERVATEUR"

Coisas estranhas acontecem em Paris no verão. Na superfície, um milhão de jovens aplaudem um papa velho, cansado e obstinado, cujas mãos tremem. Num túnel, a princesa de Gales e seu rico amante muçulmano morrem esmagados num carro conduzido por um motorista bêbado.
Ouço ou leio frases sobre a morte de Diana, clichês do tipo "o mundo chora", "ela morreu nos braços de seu último amor", "a princesa de grande coração", "a morte nivela os poderosos e os pobres". Digo a mim mesmo que a má literatura é uma substância indestrutível derramada em grande quantidade sobre todos os casos embaraçosos. A princesinha era embaraçosa. Ela não fez o que deveria ter feito, ela pôs de pernas para o ar o filme em que se viu presa, trocou de papel durante as filmagens, misturou os gêneros, as épocas, os contratos, as identidades, as poses. Ela fica bem na foto, mas o texto do romance é desprezível.
Estamos no tempo em que vivemos, superexposto, afásico. O espetáculo em questão é o silencioso desenrolar da morte. Diana tinha a escolha entre uma morte lenta e real ou a aceleração da destruição violenta. Ela mergulhou na boca do lobo.
Quer dizer então que a monarquia britânica vive seus derradeiros momentos? Todo mundo o diz, ou tem vontade de dizê-lo. Mas a sequência dessa narrativa é perfeitamente previsível: lady Di não tardará a ser transformada em mãe ideal e trágica, e terá início, então, a lenda do príncipe triste -a de seu filho, o futuro rei William. Assim, ela poderá reinar por meio dele, mas como morta.
Tudo já está pronto; posso até ver as imagens. Charles é um pai distante e fraco, um filho atrasado, grudado a sua Camilla maternal; de agora em diante são seus filhos que contam, a restauração já se encontra em andamento. Westminster não dirá nada diferente. Com uma hipocrisia programada, a indústria do espetáculo assumirá ares de consternação e apresentará desculpas, vai jurar que nunca mais dará apoio a tais excessos, e, obviamente, o continuará fazendo exatamente como antes.
Diana passará a ser vista "em perspectiva". A moral desta história ficará clara em muito pouco tempo: ser mulher livre expõe a mulher em questão a um final sangrento, e talvez o próprio Deus tenha tido uma parte em tudo isso. Aliás, ela já não estava grávida de seu estranhíssimo noivo egípcio? Dá para imaginar o futuro rei de uma monarquia renovada tendo um meio-irmão, ainda por cima estrangeiro? Convenhamos: é um mito sacrifical caído do céu. "God Save the King." A questão principal passa a ser quem vai se casar com William (ou seja, quem vai se casar com Diana no além). Todas as jovens inglesas já estão pensando nisso.
A vida de Diana é reveladora do sistema global no qual todos nós vivemos presos. Escolhe-se uma mocinha de bom meio social, um pouco desajeitada, um pouco simplória, de grandes olhos azuis. Ainda é a época em que o cinema conta histórias de reis, rainhas, princesas, com cerimônias, carruagens, cavalos, entusiasmo popular, casamentos idílicos. É verdade que a decoração já apresenta algumas rachaduras, mas o fato é que o século 19 ainda está firme e forte, a grande Vitória deixou sua marca gravada por muito tempo.
Enquanto isso, a técnica segue seu caminho: os jornais mudaram, a televisão está aí, dentro em pouco será possível gravar conversas telefônicas à distância. A jovem Diana, prometida à reprodução biológica pura e simples, vai descobrir, como todas as mulheres de sua época, que, de agora em diante, uma mulher tem várias vidas à sua disposição. De repente, o circuito jovem virgem/mulher casada/mãe/figura decorativa lhe parece arcaico. A princesa desajeitada a quem pedem que desempenhe um papel honorário se revolta.
Não é tanto o fato de seu marido a trair com uma antiga amante que a entedia, é o tédio puro e simples. Há o trabalho chato dos eventos promovidos por obras de caridade, mas em estilo antigo. Nada a ver com o show novo que está começando a ser montado: o do humanitarismo internacional. Este é a nova boa consciência da divulgação publicitária do mundo. Antigamente, a rainha podia assistir às contorções do povaréu de seu império, visitar a miséria, curvar-se sobre os leitos de doentes, mas a distância estava lá, intransponível. Pouco a pouco, Diana vai estudando a situação.
Ela se deprime, se fecha em si mesma, se suicida um pouco, se descobre mais bonita do que o previsto, ouve suas amigas em processo de reciclagem moderna, experimenta viver duas ou três aventuras com exemplares da fauna masculina local -para se sentir melhor, desejável, novinha em folha. Como se desconfia, não é a bagatela física que interessa a ela, mas o jogo, os sorrisos, a sedução, os deslizes do poder.
A esfera "people" ouve falar de sua nova disposição. A esfera gira rápido. Em seu império, o sol nunca se põe. O flash das câmeras é sua iluminação permanente. Seus legionários estão em todo lugar, é o domínio dos ares e dos mares. Uma princesa está em processo de evolução? Boa notícia. Assim, se aproximam de Diana. Em pouco tempo ela já estará em fase de formação. Já se pode imaginá-la em algum lugar entre Madonna e Madre Teresa.
É preciso que ela saia, que se vista, que faça confidências, que tenha uma "história verdadeira" a contar. Ela vai levar algum tempo para melhorar seu gosto, que, a bem da verdade, começou por ser detestável. Recentemente, já o conseguira: a venda de seus vestidos em prol dos carentes, falatório em torno da nebulosa Versace, outra vedete do verão assassino. A chegada da princesa de Gales à catedral de Milão para a cerimônia fúnebre do estilista assassinado -um plano que deu o que falar e não foi nada gratuito. Será preciso lamentar que Diana toma um helicóptero para ir consultar sua vidente? Talvez. Ainda não dispomos das declarações da vidente. Vamos esperar -elas acabarão chegando às nossas mãos.
Assim, Diana se modela. E a metamorfose se processa, pouco a pouco. Ela tem talento, é verdadeira, é uma atriz sincera. Seu aperto de mão dado ao aidético é uma dádiva para os fotógrafos. Ela fecha os olhos com intensidade ao apertar nos braços um garotinho negro que arregala os seus -mas ele é cego e, além disso, já morreu.
Quanto mais o look de Diana melhora, quanto mais ela é engajada, esportiva, elegante, alegre, afetuosa, mais sua aproximação com a infelicidade dos outros, a fome, o desespero, se torna comovente. O dinheiro -um dinheiro bom- começa a chegar. Nada mais natural, já que ela trabalha. De simples manipulada ela se transforma em manipuladora, ela tem suas palavras próprias a dizer, sua assessoria de imprensa não pára de avaliar os pedidos que chegam, ela está fundando sua firma própria, sua rede mundial.
Tomemos esse corajoso Dodi al-Fayed, por exemplo: a loja de departamentos Harrods, o Ritz, um pai condecorado por Mitterrand, a obsessão em ser legitimado pela coroa britânica -é o companheiro perfeito. Barcos, aviões, carros, hotéis particulares, jóias, transferências eletrônicas poderosas, um exotismo um pouco irritante, mas de boa qualidade; tudo isso avança na direção certa. A princesa é ótima -que coragem, que poder de sedução, sem falar que é progressista, até mesmo trabalhista. É a princesa do povo, versão triunfo do mercado.
Pode parecer que a ironizo, mas sou como todo mundo: a ascensão de Diana é a própria história, não importa que a empresa real só possa ter contado com essa dissidente para representá-la. Não importa, ou, pensando bem, tanto melhor: a monarquia será salva por ela. Diana é, para Windsor, uma espécie de De Gaulle. Ela sai, ela agita a revolta, ela explode, ela retorna. Mas ela não deixou de ser uma boa mãe? Eis o essencial. Ela quis ser feliz? E daí? A felicidade é uma idéia nova em Buckingham. Felicidade esta, ademais, historicamente justificada: não se deve esquecer que o duque de Windsor e a sra. Simpson, aqueles do velho escândalo, tinham a tendência um tanto quanto embaraçosa de apertar a mão de Hitler.
Isto dito, o espetáculo tem suas leis e elas são implacáveis. Diana deve ter pensado que poderia jogar esse jogo em toda inocência (esse gênero de ingenuidade possui uma certa plasticidade histérica). Mas a esfera "people" não gosta de amadores, de marginais, daqueles que têm a pretensão de explorá-la sem lhe servir com lealdade, os que imaginam que é para eles que a máquina funciona. Diana precisa tornar-se profissional.
Uma capa da "Vanity Fair" ainda é um prazer. No entanto, de onde vem esse mal-estar, esse mau pressentimento, esse novo tédio que desponta no horizonte, logo agora quando tudo parece estar indo tão bem? Diana abre um livro que lhe foi recomendado por um amigo francês. Ela lê: "Toda a vida nas sociedades caracterizadas por condições modernas de produção se anuncia como um imenso acúmulo de espetáculos. Tudo que é vivido diretamente se distancia numa representação" (1). Ela não entende muito bem. Prossegue a leitura: "O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediatizada por imagens".
Não, ela realmente não está entendendo. A imagem é a própria realidade, de que adianta tecer reflexões a respeito? Ela boceja, faz um muxoxo, bate as pálpebras, ergue seus admiráveis olhos azuis para o teto do hotel Ritz. Lê mais um pouco: "À medida que a necessidade se vê socialmente sonhada, o sonho se torna necessário. O espetáculo é o pesadelo da sociedade moderna acorrentada, que só expressa seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião desse sono".
Ela fecha o volume -esse livro não é para ela, por um instante ela pensara que ele lhe falaria de sua profissão. Pois sua vida hoje em dia é trabalho em tempo integral. O esconde-esconde com os paparazzi é exaustivo, mas também excitante -não exageremos, é necessário manter a tensão, é preciso haver fugas, corridas, desaparecimentos, reaparecimentos, suspense. Diana se lançou num grande filme. Uma superprodução, com pirâmides egípcias ao fundo, o British Museum culpado de haver guardado tesouros no passado, colonialismo superado, salto para o terceiro milênio. Esse Dodi é um pouco pesado, ele estava acostumado com modelos fáceis -aliás, olha aí uma delas que procura se divulgar, exibindo-se, de aliança no dedo, ao lado de sua advogada.
Ela chora a traição de que foi vítima, ele lhe havia prometido casamento, ela registra queixa. Que atriz ruim -suas lágrimas são forçadas demais. E o coitado do Clinton, com sua acusadora sexual! Sim, vivemos muito expostos, e, no entanto, fazemos o bem pelo menos três vezes por dia. Será que Dodi vai aguentar o rojão? Ele tem que aguentar. Será duro, mas a guerra é assim mesmo.
Além disso, que mais há para se fazer? Apoiar-se em quem? Ele é esportivo, gentil, atencioso, respeitoso, sensível às enxaquecas de sua namorada real. Por que não quer passar esta noite no Ritz? Parece fazer questão absoluta de que os fotógrafos rondem seu hotel particular. Quer dizer que será preciso, mais uma vez, se lançar numa fuga-perseguição. O pessoal do hotel parece achar isso divertido, e Paris não deixa de ser uma cidade linda.
O quê? O papa acaba de fazer um sucesso enorme por aqui? Quero ver as fotos. É mesmo, nada mal. Elizabeth, na condição de chefe da Igreja Anglicana, deve estar verde de inveja. Ótimo. Coitada. Que vida. Bem, Dodi está cada vez mais irritado, deve ser o telefonema que recebeu do pai. Ele bebeu demais. Vamos pegar um chofer do hotel, que também parece estar um tanto quanto passado. É assim mesmo que se diz em francês?
Diana retoma o livro por um instante (já que não há nada mesmo para assistir na televisão). Uma frase brilha: "No mundo realmente virado de pernas para o ar, o verdadeiro é um momento do falso". Que quer dizer? Esses franceses bebem demais, ou então escrevem coisas incompreensíveis. Ela está com muito sono. Felizmente existe Paris, onde a gente gostaria de poder passear em tranquilidade, mas não, não há um momento livre, o trabalho está sempre aí.
Diana pensa por 30 segundos em seu triste Charles. Depois, em seus filhos, William, Harry. Sim, tudo vai ser muito difícil. Que aventura! E talvez seja perigoso, afinal. Enfim, ela tem a opinião a seu favor, e a opinião é a rainha do mundo, não é mesmo? Pronto, chegou a hora de ir embora. Ela se olha no espelho uma última vez. Perfeita, cada vez mais perfeita. Ela fecha a bolsa e joga o livro de lado: sabe que não vai precisar dele.

Nota: 1. "La Société du Spectacle", de Guy Debord. Gallimard, Folio. "A Sociedade do Espetáculo" foi lançado no Brasil pela Ed. Contraponto.

Tradução de Clara Allain.

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