São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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PORQUE combatemos

SUBCOMANDANTE MARCOS
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

"A guerra é um assunto de importância vital para o Estado -é a província da vida e da morte, o caminho que conduz à sobrevivência ou ao aniquilamento. É indispensável estudá-la a fundo."
Sun Tsé, "A Arte da Guerra"

O neoliberalismo, como sistema mundial, é uma nova guerra de conquista de territórios. O fim da Terceira Guerra Mundial, ou Guerra Fria, não significa, de maneira alguma, que o mundo tenha superado a bipolaridade e reencontrado a estabilidade, sob a hegemonia do vencedor. Pois, se há um vencido (o campo socialista), é difícil nomear o vencedor. Os Estados Unidos? A União Européia? O Japão? Os três juntos?
A derrota do "império do mal" abre novos mercados, cuja conquista provoca uma nova guerra mundial, a Quarta.
Como todos os conflitos, este também obriga os Estados nacionais a redefinir sua identidade. A ordem mundial retornou às antigas épocas das conquistas da América, da África e da Oceania. Estranha modernidade, que dá dois passos para frente, três para trás. O crepúsculo do século 20 assemelha-se mais aos séculos bárbaros precedentes do que ao futuro racional, descrito por tantos romances de ficção científica.
Vastos territórios, riquezas e, sobretudo, uma imensa força de trabalho disponível aguardam seu novo senhor. Única é a função de mestre do mundo, numerosos são os candidatos. Daí a nova guerra entre os que pretendem fazer parte do "império do bem".
Se a Terceira Guerra Mundial viu o embate entre capitalismo e socialismo em diversos terrenos e com graus de intensidade variáveis, a Quarta é travada entre grandes centros financeiros, em teatros mundiais e com uma formidável e constante intensidade.
A famigerada "Guerra Fria" atingiu temperaturas elevadíssimas: desde as catacumbas da espionagem internacional até o espaço sideral da famosa "guerra nas estrelas" de Ronald Reagan; das areias da Baía dos Porcos, em Cuba, até o delta do Mekong, no Vietnã; da desenfreada corrida pelas armas nucleares até os selvagens golpes de Estado na América Latina; das manobras condenáveis dos exércitos da Otan até as ameaças dos agentes da CIA na Bolívia, onde foi assassinado Che Guevara. Todos estes acontecimentos acabaram por arruinar o campo socialista como sistema mundial e por dissolvê-lo como alternativa social.
A Terceira Guerra Mundial mostrou os benefícios da "guerra total" para o vencedor -o capitalismo. O pós-guerra deixa entrever um novo dispositivo planetário, cujos principais elementos conflitantes são o crescimento decisivo das terras de ninguém (em virtude da derrocada do Leste), o desenvolvimento de algumas potências (os Estados Unidos, a União Européia e o Japão), a crise econômica mundial e a nova revolução da informática.
Graças aos computadores, os mercados financeiros, com base nos escritórios de câmbio e a seu bel-prazer, impõem suas leis e seus preceitos ao planeta. A "mundialização" nada mais é que a extensão totalitária de sua lógica a todos os aspectos da vida. Mestres recentes da economia, os Estados Unidos são agora guiados -teleguiados- pela própria dinâmica do poder financeiro: a livre-troca comercial. E essa lógica tirou proveito da porosidade acarretada pelo desenvolvimento das telecomunicações para se apropriar de toda a gama de atividades do espectro social. Enfim, uma guerra mundial totalmente total!
Uma de suas primeiras vítimas é o mercado nacional. À maneira de uma bala atirada no interior de um recinto blindado, a guerra desencadeada pelo neoliberalismo ricocheteia e acaba por ferir o atirador. Uma das bases fundamentais do poder do Estado capitalista moderno, o mercado nacional, é liquidada pela canhonada da economia financeira global. O novo capitalismo internacional torna os capitalismos nacionais caducos e esfomeia, até a inanição, os poderes públicos. O golpe foi tão brutal que os Estados nacionais não têm força de defender os interesses dos cidadãos.
A bela vitrine da Guerra Fria -a nova ordem mundial- foi estilhaçada pela explosão neoliberal. Alguns minutos bastam para que as empresas e os Estados se desintegrem -e não por causa do sopro das revoluções proletárias, mas em razão da violência dos furacões financeiros.
O filho (do neoliberalismo) devora o pai (o capital nacional) e, de passagem, destrói as mentiras da ideologia capitalista: na nova ordem mundial, não há nem democracia, nem liberdade, nem igualdade, nem fraternidade. A cena planetária foi novamente transformada em campo de batalha, onde reina o caos.
Por volta do final da Guerra Fria, o capitalismo criou um horror militar: a bomba de nêutrons, arma que destrói a vida, mas respeita as construções. Uma nova maravilha foi descoberta por ocasião da Quarta Guerra Mundial: a bomba financeira. Ao contrário daquelas de Hiroshima e Nagasaki, esta nova bomba não somente destrói a "polis" (aqui, a nação) e inflige a morte, o terror e a miséria àqueles que nela habitam, mas transforma o seu alvo em simples peça no quebra-cabeça da mundialização econômica. O resultado da explosão não é uma pilha de ruínas fumegantes ou milhares de corpos inertes, mas um bairro que se soma a uma megalópole comercial do novo hipermercado global e uma força de trabalho perfilada para o novo mercado de emprego planetário.
A União Européia experimenta na própria pele os efeitos da Quarta Guerra Mundial. A mundialização conseguiu apagar as fronteiras entre Estados rivais, que há séculos eram inimigos, e os obrigou a convergir para a união política. Dos Estados-Nações até a federação européia, o caminho será pavimentado de destruições e de ruínas, a começar pelas da civilização européia.
As megalópoles se reproduzem em todo o planeta. As zonas de integração comercial constituem o seu terreno predileto. Na América do Norte, o Nafta, acordo de livre-comércio entre o Canadá, os Estados Unidos e o México, precede a realização de um velho sonho de conquista: "A América para os americanos".
Será que as megalópoles substituem as nações? Não, ou melhor, não apenas. Elas lhes atribuem novas funções, novos limites e novas perspectivas. Países inteiros tornam-se departamentos da megaempresa neoliberal, que cria, de um lado, a destruição/despovoamento, e, de outro, a reconstrução/reorganização de regiões e nações.
Se as bombas nucleares tinham um caráter dissuasivo, cominatório e coercivo durante a Terceira Guerra Mundial, as hiperbombas financeiras, no transcorrer da Quarta, são de natureza diversa. Elas servem para atacar os territórios (Estados-nações), destruindo as bases materiais de sua soberania e produzindo seu despovoamento qualitativo -a exclusão de todos os inaptos à nova economia (por exemplo, os índios). Mas, simultaneamente, os centros financeiros operam uma reconstrução dos Estados-Nações e os reorganizam segundo a nova lógica: o econômico prevalece sobre o social.
O mundo indígena está repleto de exemplos que ilustram essa estratégia: Ian Chambers, diretor responsável pela América Central da Organização Internacional do Trabalho (OIT), declarou que a população indígena mundial (300 milhões de pessoas) vive em zonas que contêm 60% dos recursos naturais do planeta. "Não admira, portanto, que surjam inúmeros conflitos pelo domínio das terras. (...) A exploração de recursos naturais (petróleo e minas) e o turismo são as principais indústrias que ameaçam os territórios indígenas na América" (1). Depois vêm a poluição, a prostituição e as drogas.
Nessa nova guerra, a política, como motor do Estado-Nação, não existe mais. Ela só serve para administrar a economia, e os homens políticos não passam de administradores de empresa.
Os novos mestres do mundo não precisam governar diretamente. Os governos nacionais se incumbem de administrar os negócios por conta deles. A nova ordem é a unificação do mundo num mercado único. Os Estados não passam de empresas com gerentes à guisa de governo, e as novas alianças regionais mais parecem uma fusão comercial do que uma federação política. A unificação produzida pelo neoliberalismo é econômica; no gigantesco hipermercado planetário, só circulam livremente as mercadorias, mas não as pessoas.
Essa mundialização difunde, também, um modelo geral de pensamento. O "american way of life", que seguira as tropas americanas durante a Segunda Guerra Mundial, depois no Vietnã e, mais recentemente, no Golfo, estende-se, agora, ao planeta, por obra dos computadores. Trata-se de uma destruição das bases materiais dos Estados-Nações, mas também de uma destruição histórica e cultural.
Todas as culturas forjadas pelas nações -o nobre passado indígena da América, a brilhante civilização européia, a sábia história das nações asiáticas e a riqueza ancestral da África e da Oceania- são corroídas pelo modo de vida americano. O neoliberalismo impõe a destruição de nações e de grupos de nações, ao fundi-los num único modelo. Trata-se, assim, de uma guerra planetária (a pior e a mais cruel) que o neoliberalismo move contra a humanidade.
Estamos, aqui, diante de um quebra-cabeça. Para reconstituí-lo, para compreender o mundo de hoje, faltam muitas peças. Podemos, no entanto, encontrar sete delas, a fim de poder esperar que esse conflito não termine com a destruição da humanidade. Sete peças para desenhar, colorir, recortar e tentar reconstituir, encaixando-as às outras, o quebra-cabeça mundial.
A primeira dessas peças é a dupla acumulação de riqueza e pobreza no dois pólos da sociedade planetária. A segunda é a exploração total do mundo. A terceira é o pesadelo de uma parte ociosa da humanidade. A quarta é a relação nauseante entre o poder e o crime. A quinta é a violência do Estado. A sexta é o mistério da megapolítica. A sétima são as múltiplas formas de resistência que a humanidade opõe ao neoliberalismo.

Continua à pág. 5-5

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