São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Mistérios do bom e do mau

ALAIN DE BOTTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

James Boswell certa vez perguntou ao Dr. Johnson quais eram suas opiniões sobre o casamento: seria ele uma instituição natural? Longe disso: "Meu senhor, um homem e uma mulher selvagens encontram-se por acaso, mas tão logo o homem veja uma mulher que lhe agrade mais, ele não hesitará em abandonar a primeira", replicou Johnson com cinismo característico -pois este letrado setecentista recusava-se a acreditar que os seres humanos fossem capazes de se portar decentemente na ausência de leis, costumes, educação e razão.
E quando Boswell perguntou-lhe se pensava que os homens naturalmente sentem compaixão por seus semelhantes, Johnson respondeu: "A compaixão não é natural ao homem. As crianças são sempre cruéis. Os selvagens são sempre cruéis. A compaixão só é adquirida e aperfeiçoada pelo cultivo da razão".
As respostas de Johnson refletem uma visão bastante dura e corrente da natureza humana, tida por essencialmente egoísta e autocentrada. É claro que não se trata de dizer que todos nós sempre agiremos de modo egoísta, sempre abandonaremos nossos companheiros sem qualquer compaixão; mas sim de dizer que, sempre que agirmos decentemente, nós o faremos em virtude de nossa educação e socialização, ensinados que fomos a reprimir nossos instintos naturalmente ávidos e agressivos. Sem constrições, sem incentivos positivos, só poderia haver a barbárie.
Essa versão egoísta da natureza humana encontrou bastante respaldo entre filósofos, e sua formulação mais pungente aparece no século 17, no "Leviatã" (1651), de Thomas Hobbes. A vida do homem no estado de natureza -sem leis nem governo- era, para Hobbes, "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta", uma vez que os homens são por índole agressivos, autocentrados, insociáveis e obcecados por um "desejo de ganho imediato".
Num estado de natureza, as pessoas ou bem se matariam umas às outras, ou bem viveriam em contínuo "temor e suspeita mútuos". Hobbes não era o único a ver as coisas assim: Spinoza afirmava que os homens tendem naturalmente a pensar apenas em si mesmos: "Em seus desejos e opiniões sobre o que é benéfico, as pessoas são sempre conduzidas por suas paixões, as quais jamais levam em conta o futuro ou as outras pessoas". E Freud julgava que, num nível inconsciente e primitivo, os seres humanos são inerentemente hostis, destrutivos, egoístas e cruéis. "A inclinação à agressão é um dispositivo instintivo primário no homem. O inconsciente é sempre infantil."
Mas como esses filósofos pessimistas explicam o fato de que a vida diária seja repleta de exemplos de cooperação, generosidade e altruísmo aparentes? Com a hipótese de que sempre cooperamos por razões egoístas. Não é porque sou um bom sujeito que resgato você de um rio: talvez você possa me oferecer um emprego, talvez eu queira impressionar um jornalista ali na margem, o que certamente me levará às manchetes dos vespertinos.
Para Hobbes, indivíduos que decidem viver em sociedade não são melhores ou menos egoístas do que os selvagens: são apenas mais clarividentes, percebendo que, se cooperarem, podem ser mais ricos e mais felizes. Seu bom comportamento deriva do seu egoísmo: dois homens pré-históricos descobrem que, juntos, têm mais chances de matar um tigre dente-de-sabre sem se ferirem. Eis aí o resultado otimista de premissas muito pessimistas.
Para Adam Smith, em sua "Riqueza das Nações" (1776), uma faceta admirável da sociedade moderna (e do mercado que lhe serve de suporte) é que os indivíduos são levados a um comportamento social decente por intermédio de sua ambição pessoal, justamente o traço mais estável da psicologia humana: "Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas sim de seu interesse pessoal. Não contamos com sua humanidade, mas com seu amor de si, e não lhes falamos de nossas necessidades, mas de seus ganhos". O que não quer dizer que o açougueiro não nos daria algo de comer se estivéssemos à míngua -só não podemos contar com isso.
O egoísmo filosófico recebeu seu maior impulso com a publicação, em 1859, da "Origem das Espécies", de Charles Darwin. Darwin explicava que tão-somente características genéticas favoráveis ao sucesso reprodutivo dos indivíduos tinham chance de se fixar na espécie; de modo análogo, traços de caráter que não conduzissem ao ganho pessoal seriam erradicados ao longo do tempo. Para um darwinista linha-dura não haveria razão evolucionária para agir de outro modo: seria pura loucura mergulhar num rio para salvar uma criancinha.
Mas basta observar como o mundo anda para perceber que o egoísmo psicológico, ainda que muitas vezes persuasivo, não dá conta da história toda. A explicação mais sugestiva sobre a origem do altruísmo encontra-se na "Investigação sobre os Princípios da Moral" (1751), de David Hume.
Em vez de limitar os desejos humanos àqueles determinados pelo interesse pessoal (comida, dinheiro, glória etc.), Hume percebeu que muitas das nossas paixões baseiam-se no que ele chamava de simpatia -ou seja, a capacidade de sentir em si mesmo os sofrimentos e mesmo as alegrias de outrem. Essa visão do ser humano como criatura simpática tornava impossível traçar, à maneira de Hobbes, uma nítida linha divisória entre interesse pessoal e interesse alheio, uma vez que agora é possível encarar o interesse alheio como se ele fosse um interesse pessoal. Em suma, Hume propôs uma razão emocional para nosso comportamento altruísta.
É claro que os adeptos mais fervorosos da teoria egoísta poderiam retrucar que alguém que ajuda uma pessoa faminta só o faz para se proporcionar algum prazer obscuro e suspeito. Ainda que pouca gente ache divertido prestar socorro aos necessitados, aqueles que o fazem claramente derivam certa satisfação dessa atividade -e, sendo assim, não podem se considerar altruístas. Nessa visão, Madre Teresa é tão egoísta quanto o executivo mais durão.
Mas, outra vez, há que fazer distinções: afirmar que todos os desejos humanos -do desejo de ser útil aos necessitados ao desejo de expandir uma empresa- são fisiologicamente egoístas não significa que o objeto do desejo é necessariamente egoísta. Podemos concordar com Hobbes e pensar que cada um de nós busca o que é melhor para si: mas esta definição não impõe restrições a quais coisas nós teremos por boas.
Como a vida cotidiana mostra repetidas vezes, as coisas que consideramos boas não incluem apenas o ganho, mas também o sacrifício de seu tempo, saúde, status, riqueza e, em situações trágicas, de sua própria existência.

Tradução de Samuel Titan Jr.

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