São Paulo, segunda-feira, 6 de outubro de 1997
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Sem regime militar e Collor, foi a melhor visita do papa ao Brasil

ELIO GASPARI
COLUNISTA DA FOLHA

Foi a melhor visita de João Paulo 2º ao Brasil. Sem um regime militar a estorvá-lo e sem um Fernando Collor desmoralizado a constrangê-lo, o papa teve paz para cuidar de suas próprias preocupações.
Durante quatro dias, levou os brasileiros a pensar na família e na vida. Encarnou a grandeza da fé católica. Barateado, o papa teria vindo ao Brasil condenar o aborto e o divórcio.
Não veio batalhar contra o divórcio e a prova disso esteve na cena em que mandou chamar Roberto Carlos e sua mulher (a terceira), presenteando-os com dois rosários. Veio defender a instituição do matrimônio ou, como cantava o coral de jovens peregrinos: "Que nenhuma família comece em qualquer de repente".
Também não veio combater o aborto, mas defender a vida. Entenda-se por defender a vida o trabalho das freiras do Verbo Encarnado que o ouviam ao pé do palco no parque do Flamengo.
São jovens, e há 36 delas no Brasil, 13 trabalham nos bairros pobres de São Paulo e estão construindo uma maternidade para mães solteiras em Rio Grande da Serra. Vieram quase todas e tinham lágrimas nos olhos ao contemplá-lo. Quatro delas, contemplativas, ficaram rezando em suas celas.
O que fez desta visita (talvez a última) a melhor das três foi a capacidade do papa de propagar a concepção que os católicos têm (ou deveriam ter) da vida. Ela é um dom de Deus, coisa boa, motivo de felicidade. O nascimento de uma criança, seja onde for, é uma dádiva.
Como já ensinou João Cabral de Melo Neto, descrevendo um menino que sai do Capibaribe para um mocambo melhor, nos mangues do Beberibe: "Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria".
Essa é uma idéia que pode ser defendida até mesmo por quem não tem fé nenhuma.
Para o católico, coisa que ninguém é obrigado a ser, continuar na igreja achando que a vida dos miseráveis pode ser uma encrenca é, no mínimo, um padecimento.
Os índios foram convertidos à força e o clero pouco fez contra a escravidão. Em diversas ocasiões o catolicismo brasileiro foi uma carga para os miseráveis. São tempos passados.
A cena da família negra que entrou no Maracanã representando a chegada de seus antepassados ao Brasil foi uma das mais emocionantes já acontecidas naquele meio de campo.
Pode ser comparada a alguns dos melhores momentos em que Didi, o Príncipe Etíope, dali passava a bola.
Reflexão
O papa foi embora deixando no Brasil uma ponta de reflexão sobre o sentido das famílias e da existência. É certo que algumas pessoas não conseguiram ouvi-lo. (O senador Eduardo Suplicy, por exemplo, foi à missa do parque do Flamengo para ouvir a si próprio. Enquanto João Paulo 2º rezava a "Ave Maria", Suplicy contava as atividades do senador Suplicy em defesa dos sem-terra.)
Muitos outros poderão preferir não entendê-lo, mas os problemas com que ele mexeu sempre estiveram por aí. Quem quis fingiu que não viu.
Há uma relação direta entre as famílias dissolvidas e a pobreza. Para quem prefere raciocinar com estatísticas, entre 1980 e 1991, a população com menos de 17 anos vivendo em lares chefiados por mulheres subiu de 9% para 13%.
Mais: as famílias chefiadas por mulheres com filhos abaixo de 14 anos representavam 58% do total de famílias com até meio salário mínimo de renda mensal "per capita".
Há uma relação direta entre as famílias dissolvidas e a pobreza. Há também uma resposta na ponta da língua: o problema seria menor se essas mulheres não tivessem procriado. Daí o presidente Fernando Henrique Cardoso, há poucas semanas, ter registrado que a inclusão do processo de esterilização denominado laqueadura nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) era um sonho da mulher brasileira e se tornou uma conquista.
Nada de errado com FFHH. Ele não é católico, a Igreja Católica não manda no seu governo (o que é ótimo), o número de mulheres que desejam se esterilizar é imenso e, para elas, deu-se de fato uma conquista.
Ademais, nenhuma senhora foi obrigada a fazer laqueadura e o próprio presidente ressalvou que esse não é necessariamente o melhor contraceptivo disponível.
A chegada de uma criança tem mais a ver com o futuro que com o presente. A questão se situa muito acima da agenda de um mandato presidencial. Tem a ver com a vida e, muitas vezes, com a família.
À primeira vista, a esterilização é uma solução para preservar o futuro. Será que o futuro tem alguma coisa a ver com isso?
Acaba de estrear nos Estados Unidos um magnífico documentário intitulado "O Longo Caminho para Casa" ("The Long Way Home"). Mostra a vida dos judeus libertados dos campos de concentração nazistas em 1945.
Conta que durante anos eles viveram em campos de refugiados -em alguns casos, sem sair do lugar onde estavam. Era uma gente que tinha medo do passado e queria esquecer o presente.
Pois a maior taxa de matrimônios e nascimentos entre as comunidades judaicas de todo o mundo se deu nos campos de refugiados nesses anos. A formação de uma família e a chegada de uma criança têm mais a ver com o futuro do que com o presente. O futuro se chamava Estado de Israel.
As sociedades vivem períodos de progresso ou decadência sem dar muita importância a pequenos detalhes que sinalizam suas mudanças.
É verdade que o atentado de Roma mudou a natureza da segurança do papa, mas Paulo 6º estivera na Colômbia em 1968 e sua segurança não chegava a um décimo da que hoje protege João Paulo 2º. Mudou o mundo, mudou a Colômbia e mudou o papado.
Cães
Mesmo assim, foi preciso que João Paulo 2º viesse ao Rio de Janeiro para se perceber que esse negócio de botar cachorro para tomar conta de gente é coisa de animal.
Foi preciso que o papa mandasse recolher os cães para que a cidade fosse poupada da humilhação da cachorrada do Estado, protegendo a privatização da Vale do Rio Doce, no Rio, e a retomada de edifícios ocupados em Sapopemba (SP).
A "descaninização" foi conseguida por meio de um recado remetido ao presidente da República por intermédio de Ruth Cardoso. Era curto: "Isso não pode continuar". Não continuou.
Se nada sobrasse da viagem, o simples fato de o papa ter mandado recolher os cães já seria um bom começo de conversa para as autoridades que, como FFHH, acham conveniente pedir conselhos ao papa.
Isso supondo-se que FFHH estava falando sério quando disse que fora se aconselhar com João Paulo 2º a respeito do desemprego.
Uma mensagem que parecia banal, mas precisava ser dita. Salvo o episódio canino, foram quatro dias de viagem sem tensões, sem polêmicas novas, mas com uma metódica repetição do tema central que o trouxe ao Rio. Antes mesmo de desembarcar, ainda no avião, o papa resumia sua mensagem. É simples:
- O futuro da humanidade passa pela família.
Parecia banal, mas fazia tempo que ninguém dizia isso. De certa maneira, fazia tempo que não se falava no assunto. Podia-se até pensar que passasse pela globalização ou pela reengenharia.

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