São Paulo, quinta-feira, 9 de outubro de 1997
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Paradoxos do racismo

OTAVIO FRIAS FILHO

A Justiça francesa começa a julgar um funcionário do governo de Vichy, o regime títere sob ocupação nazista, acusado de deportar judeus para Auschwitz. Numa época em que o racismo recrudesce na Europa, voltado contra imigrantes turcos, árabes e negros, o julgamento faz lembrar que o anti-semitismo foi mais do que mera mania de Hitler.
Era um sentimento difuso em meio à população de vários países, além da Alemanha, que o ditador conseguiu organizar até os limites máximos da demência. É sabido como frustrações e ressentimentos de todo tipo foram canalizados na fúria contra o judaísmo, por meio de uma teoria racial que justificava os impulsos mais sinistros da agressividade.
Por que, no entanto, os judeus? O anti-semitismo é assunto dos mais complexos, estantes inteiras podem ser recheadas com os livros que o tema suscitou, numa amplitude que seria impensável abarcar, menos ainda num artigo de jornal. A identidade étnica dos judeus é questionável; o vínculo é muito mais de caráter religioso e cultural.
Apesar das anedotas, cultivadas pelo próprio humorismo judaico, evidentemente não existem aspectos distintivos que permitam identificar um judeu pelas aparências, como ocorre quase sempre no mecanismo racista. A dificuldade dessa identificação deve estar na origem do traço paranóico sempre tão saliente no anti-semitismo.
Vem daí, provavelmente, a idéia de que a suposta conspiração sionista age às ocultas, de forma ardilosa e dissimulada, não pelo combate aberto, mas pelo solapamento do edifício cristão ou nacional. As grandes contribuições do espírito judaico, na ciência e nas artes, não escaparam à suspeita de fazer parte dessa estratégia de erosão.
Durante o período medieval preponderou o elemento religioso (os judeus seriam os assassinos de Cristo), enquanto na época moderna o elemento nacionalista adquiriu maior peso na reprodução do preconceito. Privados de direitos ao longo dos séculos, os elementos internos de sua cultura se enrijeceram, a solidariedade tornou-se imperativo moral.
A unidade impressionante da cultura judaica, capaz de congregar grupos humanos separados por enormes distâncias de tempo e espaço, é resultado da pressão de um preconceito maciço, continuado. É muito possível que o reforço seja mútuo, ou seja, que o isolacionismo tenha também gerado o preconceito, num ciclo sem fim.
Não se pode esquecer que os judeus são o único povo moderno que pratica a endogamia de maneira sistemática; até hoje é um problema familiar quando o filho ou, mais grave, a filha decide casar-se fora da comunidade eleita. Endogamia e preconceito são duas faces de uma mesma lógica infernal, que terminou em Auschwitz.
Ou melhor, em Jerusalém. Somente o trauma do nazismo poderia viabilizar a idéia extravagante da reemigração para a Palestina, como se os descendentes dos caldeus, se houvesse, fizessem jus ao Iraque. Israel é uma realidade que não tem mais cabimento rever; a endogamia, no sentido mais amplo, continua sendo o problema.

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