São Paulo, quinta-feira, 9 de outubro de 1997
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Um norte para o país

JOÃO ALBERTO CAPIBERIBE

Nós, da Amazônia, estamos preocupados com a crescente exploração pela mídia de fatos que incriminam a região. Os brasileiros podem estar fazendo mau julgamento de nossa realidade, induzidos por quem nos atribui ilicitudes que têm outra origem e endereço.
O Brasil dos precatórios, dos frangos e do Proer precisa saber que a sua outra metade não pode ser julgada, genericamente, por políticos que vendem votos e alugam mandatos; nem por governadores com múltipla identidade ou que se apropriam de verbas públicas.
Esses maus amazônidas não representam a maioria da consciência regional, e a prática deles não deve comprometer a determinação do nosso povo de construir uma sociedade bem estruturada, com predomínio da cidadania.
A Amazônia tem a oferecer a densa história de uma enorme e bela civilização construída a ferro e fogo, cuja identidade pode ser fundamental para o humanismo no terceiro milênio.
A primeira parte dessa história começa no século 16, com os colonizadores iniciando a agressão contra a região e seu povo. Os séculos 17, 18 e 19 foram marcados pelos ataques da pirataria internacional aos nossos minérios, madeiras e essências florestais, ao mesmo tempo em que registravam 300 anos de genocídio contra os índios e caboclos.
A segunda parte é a dos ciclos da borracha, na virada do século 20. Experimentamos alguma prosperidade por conta do capital internacional, mas também absorvemos os males do colonialismo, que perduram até hoje.
Nos últimos 50 anos, sem comiseração, enfrentamos a terceira e atual parte da história da Amazônia, com a desvantagem de lutar contra um inimigo mais próximo e dissimulado, que utiliza os símbolos da identidade nacional enquanto nos exclui e estigmatiza.
A ameaça não vem só dos estrangeiros interessados na mais rica biodiversidade do planeta. Vem dos brasileiros que assumem a responsabilidade de zelar por nosso bem-estar, mas nos tratam como carregadores de malas dos "buanas" da tecnoburocracia oficial.
Os inimigos da Amazônia falam em nome de um país que perdeu a noção de sua dimensão e diversidade e agem como os piratas e genocidas de antigamente. Presidentes, ministros, senadores e deputados, chefes disso e daquilo, bem como setores da imprensa, trabalham uma perversa discriminação contra nós, difundindo a idéia de que somos uma população de primatas querendo macular a idoneidade nacional.
Nos 4 milhões de km2 da Amazônia vivem 17 milhões de brasileiros que não usufruem da renda "per capita" de Primeiro Mundo atribuída ao país, não partilham o planejamento e a aplicação dos recursos públicos e são submetidos aos saques decorrentes da implantação de megaprojetos desconectados da nossa realidade. Porém a região persiste na tentativa de criar um mundo novo, forjado nas suas raízes históricas, culturais e étnicas, oferecendo alternativas ao atual modelo civilizatório.
No Estado do Amapá, implementamos um Programa de Desenvolvimento Sustentável -talvez a única experiência do gênero como política de governo colocada em prática no Brasil- que interessa ao país e ao mundo.
Avalizado pelo G-7 desde 1995, o PDSA trata os índios com respeito étnico, garante aos ribeirinhos, pescadores, agricultores e extrativistas acesso ao crédito oficial desburocratizado, faz as escolas públicas administrarem o orçamento da educação e torna as entidades da sociedade civil organizada parceiras preferenciais do governo.
O sr. presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, concedeu longa entrevista à revista "Veja", há cerca de um mês, apontando os caminhos que o país deve seguir para resolver problemas numa vida globalizada.
É difícil não concordar com o que Sua Excelência diz, tais a profundidade e o acerto da análise. Mas para nós, amazônidas, também é difícil acreditar que o presidente queira pôr isso em prática. A razão da desconfiança é o tratamento que Brasília dispensa ao Amapá.
Procuramos mostrar que, nestes confins do Brasil, é possível conciliar progresso e bem-estar com preservação ambiental. Nossas ações são acompanhadas por consultores do BID e da Comunidade Européia. Mas o governo federal insiste em virar as costas para nós, ignorando projetos, minimizando pleitos e nos excluindo do Orçamento.
Seria útil que a imprensa brasileira conhecesse o programa, a responsabilidade do banco do Estado (recém-liquidado pelo Banco Central) no apoio à produção, as parcerias com diversos segmentos sociais e o trabalho com jovens, índios, idosos e negros, em vez de alardear coisas negativas -que acontecem, mas são indesejáveis também para nós. Basta de fazer humor e reforçar estigmas sobre nossas fragilidades.
Seria muito útil também que o presidente ficasse de frente para nossos problemas e percebesse que trabalhamos honestamente para o progresso e a felicidade do país, com a preocupação de preservar e apontar caminhos para a exploração racional do rico patrimônio da humanidade que é a Amazônia.

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