São Paulo, quinta-feira, 9 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Meios de comunicação e princípios

DEUSDEDITH AQUINO

O advogado José Paulo Cavalcanti Filho escreveu artigo nesta Folha (26/9) afirmando que a ausência de limites para indenizações contra empresas jornalísticas nos processos por danos morais não ameaçaria a liberdade de imprensa nem poria em risco a democracia.
Citou vários países desenvolvidos onde não há limites nem intolerável ameaça à democracia. Escreveu também que, nos EUA, a média de indenizações fica na faixa de R$ 100 mil a R$ 200 mil, não comprometendo a sobrevivência dos veículos de comunicação.
O artigo, que se insere na discussão sobre a nova Lei de Imprensa, defende a ausência de tetos para decisão dos juízes quanto aos valores a ser aplicados.
Não seria difícil rebater as afirmações de Cavalcanti como advogado. Mas não sou advogado; sou jornalista. Dessa forma, trago alguns pontos à meditação do ilustre articulista.
Cavalcanti parte do princípio de que temos um Judiciário eficiente e célere, que sempre julga com o melhor senso e o mais absoluto equilíbrio, decidindo sobre processos bem-feitos, verdadeiros atos perfeitos. Por isso, as penas seriam sempre adequadas em se tratando de julgamentos dentro da Lei de Imprensa -justamente aquela que regula a mais importante das liberdades para uma sociedade democrática.
Trabalhei como repórter e editor em redações de jornais, rádios e TVs em Belo Horizonte nos anos 70, período de censura ostensiva. Como em todas as redações, recebia telefonemas da Polícia Federal transmitindo proibições.
A lista de notícias impublicáveis vinha em conta-gotas, várias vezes por dia. Recebia-se o telefonema, sentava-se à máquina e escrevia-se, com letras grandes, a sentença proibitória ditada do outro lado. Em seguida, ela era pregada em um quadro na parede para que os colegas fossem avisados, de forma a não parar na cadeia ou responder a processo contra a segurança nacional.
Como jornalista, pratiquei autocensura. As regras eram claras: o jornalista ia preso, alguém se lembra? Muitas vezes, indignado, deixei de publicar algo relevante porque, além de mim e de minha mulher, eu tinha uma filha recém-nascida, que dependia do meu trabalho para sobreviver.
O fio que sustenta a decisão entre divulgar algo ou não é muito tênue. Só uma lei clara, que garanta a mais absoluta liberdade, pode dar a segurança necessária a jornalistas e empresas de que seu único compromisso é com o interesse do leitor. Leis pusilânimes ou dúbias colocam os três nas mãos do censor. Seja da polícia ou da Justiça.
Cavalcanti participou, como secretário-geral do então ministro da Justiça, Fernando Lyra, no início do governo Sarney, da revogação dos inúmeros atos de exceção do entulho autoritário. Ajudou a implementar as promessas libertárias do presidente Tancredo Neves, cumpridas totalmente por Sarney.
Pela sua biografia, deve conhecer os riscos que correm a democracia e a liberdade de imprensa. Deve saber que uma não vive sem a outra. Portanto, seus argumentos jurídicos estão pecando pela ausência da análise política real.
Além disso, carecem de dados recentes. Pesquisa da assessoria jurídica da Associação Nacional de Jornais mostra que, desde 1994, aumentam assustadoramente os processos por danos morais no Brasil. Os valores das ações vão de R$ 500 mil em Brasília a R$ 1,3 milhão no Rio Grande do Sul. De R$ 345 mil em Santa Cruz do Rio Pardo (SP) a R$ 500 mil no Maranhão. Dos quatro jornais envolvidos, só um tem condições de pagar. Pelo menos a primeira vez.
Registre-se que alguns processos, que têm andado velozmente, são de pessoas ligadas ao próprio Judiciário nos Estados. É o caso de pensar que isso se deve ao aumento da cidadania? Ou os veículos de comunicação ainda erram muito? Parcialmente, sim. Mas grande parte se deve ao corporativismo, ao sentimento de vingança de muitos e à busca do enriquecimento fácil de outros.
Não se duvida da seriedade da Justiça brasileira nem se pode abrir mão dela. É um dos três pilares de sustentação da democracia -ao lado do Legislativo e da imprensa. Porém é evidente que ela não dispõe de condições práticas, no momento, para arbitrar valores.
Ainda mais num país tão grande, em que as referências monetárias têm significado diferente. Sem parâmetros, as indenizações serão aleatórias. Tenho ouvido de juristas respeitados que já se instala no país a indústria da indenização por danos morais, nas diversas áreas. Pois ela será a lâmina da guilhotina no pescoço das empresas jornalísticas, caso a nova Lei de Imprensa não fixe critérios objetivos de delimitações.
É consenso que a imprensa precisa se aperfeiçoar -como, de resto, todas as instituições brasileiras. Mas num clima de liberdade ampla; nunca de leis ameaçadoras nem de atos cerceadores.
Jornalistas e veículos não desejam privilégios ou benefícios da impunidade. Aceitam ser responsabilizados pelos erros que cometerem. Só que em bases adequadas. O projeto de lei, aprovado como está, trará brutal censura econômica contra empresas jornalísticas e autocensura contra jornalistas.

Texto Anterior: Um norte para o país
Próximo Texto: Proposta; Frei Betto; Fiscalização de menos; Critério infeliz; Informações injustas; Desperdício; Xiitas; Moralização ou cassação
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.