São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 1997
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A crise (ou a falência) das "cabezas" trocadas

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Pouco antes da edição do Ato Institucional nº 2, em 1965, um grupo de intelectuais, aqui no Rio, lançou um jornal cujo título e mensagem principal era "Reunião". Pretendia-se fazer o que agora as esquerdas tentam: reunir. Apesar de sentir um calafrio mais na alma do que na espinha quando me chamam de intelectual, fiz parte desse grupo quixotesco que foi, segundo creio, o primeiro órgão de uma imprensa que depois seria rotulada de alternativa.
Durou três números, pois com a edição do AI-2 ficaria impossível falar ou pensar em qualquer tipo de reunião que criticasse o regime totalitário. Mal informados, nem suspeitávamos de que o pior viria ainda, três anos mais tarde.
No primeiro número de "Reunião", a página nobre foi escrita pelo Paulo Francis, que bolou um artigo sob o título "A falência das esquerdas". Naquela época, o artigo foi considerado injusto e derrotista. De tal maneira pressionaram o Paulo, que ele alterou o título para "A crise das esquerdas". Não me lembro de seus argumentos e considerações. Mas a ira que provocou em certos setores da oposição foi tal e tamanha, que deram razão ao Paulo: ele havia apontado dolorosa ferida que nunca cicatrizou de todo.
Nesse tempo, depois de longo e consciente estágio na alienação total, eu era tido como homem de esquerda. O fato é que havia uma situação de grave emergência humana, que arrastara e enrolara a vida institucional e política do país. Foi nessa emergência do homem que me engajei, embora reconhecendo que o homem é um animal em permanente emergência. Há emergências mais graves do que outras, e aquela era uma delas.
Sem jornal para gritar, esse grupo formado em torno de "Reunião" (Ênio Silveira, Nelson Werneck Sodré, Flávio Rangel, Joaquim Ignacio Cardoso, Paulo Francis, Alex Vianny, Antonio Callado, Márcio Moreira Alves e outros), já sendo alternativo em termos de imprensa, quis ser alternativo na rua -e foi mesmo para a rua, fazer um protesto contra o governo durante reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos) no Hotel Glória.
Fomos sumariamente jogados num velho camburão que nos despejou no quartel da PE, na rua Barão de Mesquita, que se tornaria um dos emblemas da repressão. A imprensa bem-comportada nos chamou de vulgares arruaceiros.
No grupo estava Glauber Rocha. Ele não havia participado dos preparativos que tornaram possível a modesta manifestação. Fora à editora tratar de um assunto pessoal, estava começando a montagem da produção de "Terra em Transe", soube que haveria aquela arruaça contra o regime e lá foi, por curiosidade. Quando viu a polícia baixar o sarrafo naquele grupo de amigos seus, se apresentou voluntariamente como manifestante e como tal encanado.
O oficial de dia nos chamou aos pares, ele e eu fomos os primeiros a ser fichados. A inspeção preliminar consistiu num vexame. Ficamos nus, segurando nossas roupas e sapatos, em posição de sentido. Essa cerimônia -segundo me explicaram depois- ajudava a desmoronar o que restava do moral dos presos.
Ainda estávamos nus, olhando um para o outro, e sendo examinados pelo oficial de dia, quando o telefone tocou. Era alguém do Ministério da Justiça recomendando que tivéssemos um tratamento diferenciado dos demais prisioneiros. Os outros presos foram dispensados da cerimônia.
Preenchidos os formulários, Glauber foi o primeiro a entrar na cela escura que nos destinaram. Vi-o sumir na escuridão, arrastando seus trecos, baixinho, cabeludo e nu. Depois foi a minha vez. Não sabia o que nos esperava, e me senti desconfortável na escuridão de um aposento que desconhecia. Era uma volta ao nada, ao absoluto nada da condição humana. Mas ouvi a voz de Glauber, tranquila, sensata -ele que nunca era tranquilo e sensato. Pediu que tomasse cuidado com uns colchões em frente à porta, nos quais esbarrara, caíra e machucara levemente o joelho.
Aquela voz firme e solidária ficou em mim, ainda a ouço, em alguns trancos da vida. Depois aconteceram muitas outras coisas, Glauber elogiou Golbery e Geisel, abraçou Figueiredo em Lisboa, falava em ser ministro da Cultura. Mudou quem? Mudamos todos. Ao contrário do que aconselhavam os antigos, as esquerdas se habituaram primeiro a filosofar, depois a viver. "Primum philosophare, deinde vivere."
Glauber era considerado de esquerda. Com um cinema altamente politizado, demente até a genialidade e gênio até a demência, ele quis fazer e depois cortar cabeças, ou "cabezas" -como gostava de escrever. Continuou o mesmo, sem saber dirigir automóvel, desempregado crônico, fazendo filmes cada vez mais complicados e menos assistíveis.
O Brasil de 1997 é, em muitos sentidos, o filme certinho que Glauber sempre se recusou a fazer. Tem bom acabamento exterior, mas é bastante confuso nas entranhas. Paulo Francis devia ter razão quando falou na falência das esquerdas, anos antes da queda do Muro de Berlim. Vivemos um tempo de "cabezas" que não foram cortadas, mas estão cada vez mais trocadas.

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