São Paulo, sexta-feira, 10 de outubro de 1997
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Eduardo Kac tem obra polêmica vetada no ICI

PATRICIA DECIA
DA REPORTAGEM LOCAL

A própria integridade física é o principal obstáculo que o artista eletrônico carioca Eduardo Kac, 35, está enfrentando para mostrar o trabalho inédito "Time Capsule" (Cápsula do Tempo), que envolve "tecnologias de vigilância intracorporal", no Brasil.
Programado para fazer parte do evento "Arte e Tecnologia", do Instituto Cultural Itaú (ICI), "Time Capsule" foi vetado pelo departamento jurídico da instituição por implicar risco de vida para o artista -incluindo a possibilidade de um choque anafilático.
Para fazer "Time Capsule", Kac terá que tomar uma anestesia local e introduzir uma máquina projetada especialmente para o trabalho em seu corpo. Ele não dá mais detalhes da obra para preservá-la de um possível plágio.
"A idéia é muito boa, mas os riscos são incalculáveis. Achamos que não poderíamos endossar o projeto, apesar de, pessoalmente, eu achá-lo bárbaro", afirmou Ricardo Ribenboim, diretor-superintendente do ICI.
Kac se propôs inclusive a assinar um termo de responsabilidade pela apresentação da obra, mas nem isso foi suficiente para o departamento jurídico.
"Esse tipo de preocupação, a partir do momento em que o elemento biológico está envolvido, não é infundada. Mas a obsessão com isso é. Vou minimizar todos os riscos, mas é inegável que sempre pode acontecer alguma coisa", afirmou o artista.
Segundo Ribenboim, o veto do ICI ao trabalho foi fruto de uma oposição entre pessoa física e pessoa jurídica. Isso porque as leis brasileiras responsabilizariam a instituição, mesmo que Kac assinasse o documento isentando-a das consequências.
Com a recusa do Itaú, Kac está praticamente fechando a exposição de "Time Capsule" com a Casa das Rosas, na mostra "Arte, Suporte e Computador", que acontece em novembro.
Fora do Brasil desde 1989, Kac é professor da The School of the Art Institute of Chicago (EUA) e um dos principais nomes brasileiros na área em que arte e tecnologia se entrecruzam.
Ele começou no início da década de 80, fazendo performances ao ar livre em Copacabana. Participou da exposição "Como Vai Você, Geração 80?", no Rio, em 84.
No ano seguinte fez sua primeira exibição no The Art Institute of Chicago, mostrando trabalhos de holografia. Em 95, recebeu o prêmio "Shearwater Holography Award". Seu livro "Escracho" está no MoMA (Museum of Modern Art), de Nova York.
O artista é o criador -junto com o norte-americano Ed Bennet- da "telepresença", que ele define como "uma categoria da arte". Trata-se da construção e utilização de robôs que podem ser controlados a milhares de quilômetros de distância. Nessas obras, a pessoa usa o corpo do robô para explorar o ambiente em que ele se encontra.
Todas as fases do trabalho do artista -incluindo ensaios, artigos e as algumas das experiências que desenvolve- podem ser acessadas na Internet (www.uky.edu/FineArts/Art/kac/kachome.html).
Kac está no Brasil desde o início da semana para uma palestra no ICI -no dia 7- e uma participação na 1ª Bienal do Mercosul.
"Time Capsule" é a segunda obra do artista eletrônico Eduardo Kac que explora o "terreno biológico", ou seja, o diálogo físico entre o corpo e o robô.
Há cerca de um mês, o artista apresentou o primeiro trabalho do tipo, "A Positivo", no International Symposium of Electronic Art (Simpósio Internacional de Arte Eletrônica), ou ISEA, um dos mais conceituados eventos da área.
"A Positivo" tem o primeiro "biobot" criado por Kac. Ele faz uma transfusão de seu sangue para a máquina, recebendo em troca uma solução de glicose. Ao mesmo tempo, o robô extrai o oxigênio do sangue do artista e, com ele, produz uma chama.
O experimento foi acompanhado por médico e enfermeira. Segundo Kac, qualquer pessoa poderia participar de "A Positivo". "Fui eu por uma questão prática. Mas a intenção é que a obra seja aberta a qualquer um", disse.
Para a apresentação, Kac assinou um termo de compromisso assumindo todas as responsabilidades, caso ocorresse algum problema.
Segundo o artista, seu trabalho não é "body art". Trata-se da inclusão de um elemento "quente e úmido" na arte eletrônica, algo impossível em qualquer CD-ROM, filme 3D ou num robô comum.
"Não é performance, porque não há um artista fazendo algo para ser observado pelo público. A obra só existe com a participação do humano e, apesar de ocorrer em espaço público, é uma experiência muito pessoal", afirmou.
"A Positivo" rendeu a Kac um artigo no "CyberTimes", versão para a web do jornal "The New York Times".
Eduardo Kac começou sua carreira fazendo performances na Cinelândia, no Rio. Passou pelo grafite, criou a poesia holográfica ou "holopoesia", a telepresença e agora entra na era dos "biobots", onde o corpo e a máquina interagem.
Essa última fase ainda está um pouco sem resposta para o artista. Mas todo o trabalho de Kac está permeado por uma preocupação: o diálogo.
Mas que diálogo é esse? Para Kac, ele já não ocorre por meio de palavras, mas tenta responder à principal experiência contemporânea: a transição para uma cultura digital. "Precisamos nos apropriar das tecnologias e repensá-las, repensando seus imperativos éticos, filosóficos e estéticos", afirma.
Essa transição, segundo ele, está criando um trauma físico. "Trabalhar esse trauma numa escala global e sem contradições é um problema. Atualmente, as pessoas são ou tecnofóbicas ou nerds de informática", diz.
Na opinião de Kac, as formas tradicionais de arte, que se baseiam em mecanismos de representação, não têm condições de responder a essas transição.
"Acho que esses meios se esgotaram devido a seu limite material. Hoje, a arte não pode existir como um recorte do artista. Há um contexto cultural mais amplo do que as belas-artes. Minha arte é a de reintroduzir coisas em contato."
Na maioria dos trabalhos de Kac, o espectador abandona a condição de simples observador em troca da experiência. Cada um enxerga a obra de acordo com os movimentos e as condições que o cercam.
"A presença, por si só, afeta o andamento da obra, um imperativo que as obras tradicionais ignoram. Esse caráter indeterminado da vida e do diálogo se perde na obra de arte tradicional", diz.

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