São Paulo, sábado, 11 de outubro de 1997
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Lições do abismo

RUBENS RICUPERO

Não se trata do romance de Gustavo Corção, que tanto impacto teve sobre os que entrávamos na adolescência em 1951. Thánatos, a atração do abismo, o impulso de morte e autodestruição, é a leitura que Norberto Bobbio faz do papel da extrema esquerda na queda do gabinete italiano a que acabo de assistir durante breve visita a Roma.
Machucado e desiludido, à véspera dos seus 88 anos, o mestre de Turim se queixa: "Então é mesmo verdade que, no bom momento, as esquerdas sempre erram!" Para ele, o governo Prodi, com 500 dias de duração, foi dos mais decentes que teve a Itália. Saneamento financeiro, ingresso quase assegurado ao grupo de ponta da moeda única européia, a reforma constitucional praticamente concluída pela Comissão Bicameral, a longa travessia do deserto parecia terminar com a feliz chegada à terra prometida. Mas não era para ser. Segundo Bobbio, um certo tipo de esquerda tem em relação ao poder uma atitude quase de medo da qual não consegue se emancipar, "uma vocação de ser sempre minoria".
A Rifondazione Comunista, núcleo duro e puro do velho comunismo italiano, não participava diretamente do governo de centro-esquerda. Seus 9% de votos lhe asseguravam, contudo, a posição de fiel da balança num quadro partidário fragmentado, sem maiorias claras. Esse apoio crítico, condicional, precário, permitiu ao pólo de centro-esquerda alimentar a ilusão de uma permanência que havia sido negada ao pólo de centro-direita de Berlusconi pela Liga Norte. Esta, da mesma forma que a Rifondazione, mas no outro extremo do espectro, se revelara um aliado igualmente minoritário e não-confiável.
Superados vários sustos e sobressaltos, a hora da verdade finalmente chegou quando se tratou de escolher entre a redução do déficit orçamentário a 3% do PIB e a preservação de um sistema de aposentadoria deficitário; entre o ingresso na Europa da moeda única e a defesa de um certo tipo de estado de bem-estar social cada vez menos compatível com os rigorosos critérios financeiros de Maastricht.
Vista pela mídia italiana, a crise é quase maniqueísta. De um lado o anjo bom, o primeiro ministro Prodi, que sai com dignidade e desempenho positivo. Do lado dos vilões, o líder da Rifondazione, Bertinotti, cujo primeiro nome, Fausto, parece predestiná-lo a sinistros conluios com Mefistófeles e outros espíritos das trevas.
Acusados de trotskismo, de integrismo maximalista, de fundamentalismo, os sequazes de Bertinotti são suspeitos de querer secretamente, não a defesa das aposentadorias dos trabalhadores, mas sim o torpedeamento de uma proposta que, pela primeira vez, estava em via de ter êxito na Itália. Como diz Ezio Mauro, em "La Repubblica", essa proposta é a de que "uma esquerda moderna pode governar com bons resultados as democracias ocidentais e contribuir ao nascimento de um novo europeísmo (...) hoje seu horizonte não só geográfico, mas também ideológico e cultural".
Está aí, portanto, definido com clareza rara, o dilema fundamental em boa parte do Ocidente. A escolha não é mais entre capitalismo, neoliberal ou social de mercado e socialismo, democrático ou não. Tampouco é entre direita e esquerda. A opção deve fazer-se entre a Europa unida, critério insubstituível de legitimidade e respeitabilidade política e o resto, isto é, as trevas exteriores, o "bas-fonds" dos integrismos comunistas ou fascistas.
Admitem os críticos que, em relação à Rifondazione, a crise era de identidade. Insiste-se, porém, que, para os velhos marxistas, intolerável de verdade não é a Europa de Maastricht, do rigor econômico, mas sim a Europa da queda do muro de Berlim, do fim da guerra civil ideológica. Para esses nostálgicos, o tempo histórico se teria congelado para sempre nos anos 20 e 30. O inimigo principal estaria não à direita, nem mesmo à extrema direita, mas à esquerda, no socialismo reformista e gradual, no sindicalismo que não quer destruir o sistema mas corrigi-lo. Seria, como afirma "La Stampa", a luta permanente dos "puros" contra os "impuros", dos "intransigentes" contra os "conciliadores".
Bobbio é, entretanto, dos poucos que deduz todas as implicações lógicas dessa atitude. Para ele, é difícil ser hoje de esquerda na sociedade capitalista. Prega por isso a necessidade de "repensar" o comunismo e sugere que "a política não é a corrida rumo ao bem máximo, mas a busca concreta do mal menor". Como os ideais dos puros se encontram em alturas inacessíveis, tudo o que se consegue obter não passa, aos olhos deles, de demasiado pouco. "Se se deseja viver em democracia", acrescenta, "é preciso dar-se conta do que se pode ou não se pode fazer na democracia. Esta não é branca nem negra: a democracia é cinza".
Fazendo um jogo de palavras válido em português mas não em italiano, pode-se indagar, é claro, se esse cinza é cinza-cor ou cinza-substância, resíduo do fogo da paixão e do entusiasmo que deixa atrás de si apenas o pó sem valor, o símbolo da penitência e do remorso. Pois o que nem Bobbio nem Mauro logram fazer é aprofundar o debate acerca, não da inevitabilidade do reformismo, mas do seu conteúdo, dos seus valores, do seu sentido, do seu potencial de efetivamente resolver os dois grandes flagelos deste fim-de-século: o desempenho e o aumento da desigualdade. Esses gêmeos do mal são os verdadeiros abismos do nosso tempo. Nem o social-reformismo, nem o neo-liberalismo e muito menos o comunismo real do passado demonstraram capacidade de encontrar solução satisfatória para esses problemas. A prova de fogo de qualquer proposta é essa e até agora nenhuma passou por ela de forma convincente.

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