São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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A história da enjeitada

ROBERTO CAMPOS

Uma das privatizações que deveriam ser aceleradas é a da hidrelétrica de Furnas, não só por trazer polpudo reforço ao falido Orçamento da União, como porque sinaliza o fim do ciclo do intervencionismo estatal na eletricidade. Mundialmente, o "Estado empreendedor", inchado e falido, tende a se encolher para ceder espaço ao "Estado social", sobrecarregado de urgências. A privatização da CSN sinalizou essa transformação no setor do aço, e a da Vale do Rio Doce, no dos minérios.
Furnas é o maior complexo integrado de energia elétrica do país. Suas concessões abrangem 48% da população e 69% do PIB. É inferior à Cesp em capacidade instalada, porém superior em transmissão, e depositária do nosso maior acervo de tecnologia na construção e operação de usinas hidrelétricas. Não conseguiu naturalmente escapar do tríplice vício das empresas estatais: sobrelotação de pessoal; suntuosidade de instalações administrativas e forte corporativismo assistencialista.
Curiosamente, a prestigiosa Furnas começou em 1957 como uma "enjeitada". Foi uma concepção tecnocrática de Lucas Lopes e do grupo Cemig. Os políticos mineiros, inclusive Juscelino Kubitschek, priorizavam a usina de Três Marias, toda em território mineiro e inaugurável durante a governança de Juscelino. Furnas seria uma usina fronteiriça, tributária do mercado industrial de São Paulo, o que, para o orgulho montanhês, transformaria o estado em "caixa d'água" para a industrialização do vizinho.
Os políticos paulistas, por seu lado, preferiam a usina de Caraguatatuba, a ser construída pela diversão, montanha abaixo, das águas do rio Paraíba. Somente a grande lábia de Lucas Lopes, aliada à excelência técnica do projeto, que permitiria aproveitamentos em cadeia no Rio Grande, induziram o presidente Kubitschek a endossar a idéia.
Um acidente feliz foi a passagem pelo Rio de Janeiro, em 1957, de Burke Knapp, então vice-presidente do Banco Mundial. Tendo trabalhado com Lucas Lopes e comigo na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos de Desenvolvimento Econômico, convenceu-se logo dos méritos do projeto, sobretudo por ensejar aproveitamentos futuros a jusante da barragem. Comprometeu-se a abrir uma exceção na postura negativa do Banco Mundial em Relação ao Brasil.
O Banco Mundial era então presidido por Eugene Black, financista de Wall Street, pouco tolerante em relação às nossas irracionalidades da política econômica. Tivera três desapontamentos. Após visitar Porto Alegre em 1949, convencido das potencialidades dessa província de imigração européia, aprovou um financiamento de US$ 25 milhões para eletricidade, que nunca foi sacado, expondo o Bird a acusações de ineficácia. E, em 1951, Getúlio Vargas, num famoso discurso de fim de ano, sem nenhuma base estatística, atribuiu a penúria cambial brasileira (resultante basicamente da sobrevalorização da taxa de câmbio) à "sangria de divisas" pela remessa de lucros de empresas estrangeiras.
Depois de se ter comprometido, juntamente com o Eximbank, a financiar os projetos aprovados pela Comissão Mista, Black assistiu perplexo à campanha emotiva e fetichista "O Petróleo é Nosso". Como entender que um país carente de empréstimos estrangeiros para corrigir deficiências de energia e transportes recusasse investimentos privados em petróleo, reclamando orgulhosamente o privilégio de monopolizar o risco? Além disso, o Brasil, ao longo de 1953, estava praticamente em bancarrota, e Oswaldo Aranha, ministro da Fazenda, pressionava aflitamente o Eximbank para obter um socorro emergencial de US$ 300 milhões para cobertura de importações correntes (inclusive de petróleo)!
Nosso comportamento surrealista de "mendigo orgulhoso" foi visto por Black como um insulto à lógica econômica. A criação em 1953 do monopólio estatal da Petrossauro foi assim uma espécie de príon, a proteína da vaca-louca, gerando irracionalidades nacionalóides que depois se reproduziriam na política de informática, na política nuclear e na política mineral.
Nos debates intragovernamentais sobre a privatização de Furnas notam-se três correntes de opinião. Os "fundamentalistas", priorizando os interesses dos usuários, querem o máximo de concorrência. Propõem a "desverticalização" da empresa, separando as linhas de transmissão (que deveriam ser de livre acesso) das usinas geradoras. Essas formariam dois grupos regionais, cujo desempenho poderia ser continuamente comparado. Idealmente, estimular-se-ia também a competição por meio de de termoelétricas a gás.
Infelizmente, essa opção ficou enfraquecida pela decisão de FHC de entregar à Petrossauro a construção e operação do gasoduto Brasil-Bolívia, dando uma sobrevida ao atual monopólio do gás natural. Essa decisão foi ilegal, injusta e desastrosa. Ilegal porque, abolido o monopólio estatal em novembro de 1995, deveria haver licitação pública prévia para o gasoduto. Injusta porque a Petrossauro, por mais de 30 anos, sabotou esse projeto, originalmente proposto em 1965. Desastrosa porque o dinossauro não possui cultura competitiva, tendo-lhe faltado visão estratégica para inserir adequadamente o gás em nossa matriz energética.
E logo cometeu três erros: a) importará da Bolívia gás seco, quando a importação do gás úmido permitiria a investidores privados construírem no Mato Grosso do Sul plantas de separação de subprodutos petroquímicos e fertilizantes; b) estenderá o gasoduto até Porto Alegre, visando a obstaculizar projetos de governos estaduais e empresas privadas para a importação direta do gás argentino; c) cobrará um alto preço pelo suprimento do gás, equalizando-o ao longo do percurso, com o que perderiam vantagens competitivas as regiões confinantes com a Bolívia. A consequência dessa ingerência "saurina" no transporte e comercialização do gás natural será uma diminuição do número de "players" independentes na energia térmica.
A segunda corrente de opinião na burocracia governamental é a dos "pragmáticos". Esses limitariam a venda imediata ao bloco de ações de controle de Furnas, mantendo a integridade da empresa. As ações restantes seriam subsequentemente pulverizadas pela venda ao público.
Essa solução teria a vantagem de rapidez e rentabilidade, trazendo ao Tesouro receita maior e evitando disputas jurídicas inerentes ao processo de cisão de ativos. Caberia à agência reguladora (Aneel) regulamentar o livre acesso de outros geradores às linhas de transmissão. Por sua enorme dimensão, essa empresa assim privatizada teria grande capacidade de alavancagem de novos investimentos na expansão do sistema.
Uma corrente intermediária propõem que a "Furnas Transmissão" seja imediatamente cindida da "Furnas Geração". As usinas geradoras seriam vendidas em bloco, ficando as atividades de transmissão geridas por um órgão condominial independente -o OIS (Operador Independente do Sistema)- aberto à participação de distribuidores e geradores independentes. O OIS substituiria o atual sistema de despacho de cargas, asseguraria neutralidade entre geradores e distribuidores e planejaria os investimentos adicionais no melhoramento e expansão das linhas de transmissão.
O ótimo é inimigo do bom. Os "pragmáticos" talvez tenham razão em insistir que a venda da empresa verticalizada, ainda que não maximize a concorrência, é uma solução mais rápida e menos conflituosa, que atende também aos interesses do Estado do Rio de Janeiro, onde está sediada Furnas.
O processo de privatização no Brasil é uma corrida contra o tempo. O déficit cambial em conta corrente já nos coloca na zona de perigo, enquanto o déficit global do setor público resulta em juros asfixiantes para o setor privado. O próximo ano será um ano eleitoral, em que sobem as pressões reprimidas de gastança e aumenta o nervosismo dos investidores, receosos da postergação das reformas. Isso torna urgente que Furnas seja privatizada no primeiro semestre, antes dos embates eleitorais.
Se o Brasil escapou até agora do contágio da crise asiática, isso se deve menos à excelência do gerenciamento ou às reformas inconclusas do que ao estoque de empresas privatizáveis. Nossas reservas cambiais são altas, porém voláteis. E, se alguma coisa a experiência nos ensina, é que os investidores na economia global têm memória de elefante, coragem de carneiro e velocidade de lebre...

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