São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Elite tem de pagar universidade, diz Franco

VALDO CRUZ; FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Para presidente do BC, oposição defenderá em 98 as mesmas coisas, mas de mau humor e com truculência

O presidente do Banco Central, Gustavo Franco, defende que os filhos da elite paguem pelo ensino universitário. "Não tem cabimento esse tipo de gratuidade para a elite", disse em entrevista à Folha.
Em sua opinião, os recursos destinados às universidades federais poderiam ser usados em outros programas sociais, como a bolsa-escola -a família recebe uma renda para cada filho na escola.
Um dos principais formuladores do Plano Real, Gustavo Franco, 41, acredita que na campanha eleitoral de 98 "todo mundo será a favor do Real" e defenderá "coisas muito parecidas" com as que o presidente Fernando Henrique Cardoso irá propor.
Afirma que os candidatos de oposição devem falar as mesmas coisas "apenas com mais mau humor, mais truculência ou mais lágrimas nos olhos", numa referência indireta aos temas que devem dominar a campanha presidencial do próximo ano, como desemprego e pobreza.
Na entrevista, Franco analisa os efeitos da globalização sobre o emprego. "O resultado de você colocar em contato Ásia com a Europa é gerar redução de salário ou aumento de desemprego na Europa. Não na Ásia. Lá você não tem ninguém reclamando, assim como não devia ter no Brasil."
Segundo ele, a globalização vai tornar o Brasil "um competidor cada vez mais ameaçador para muitos países da Europa" por ter salários mais baixos e produtividade crescente.
O presidente do BC diz ainda que a globalização é saudável para o Brasil porque tende a homogeneizar o país. A indústria paulista perde, mas o Nordeste ganha, diz ele.
Quando indagado sobre o problema crônico do capitalismo, que não consegue eliminar os excluídos mesmo nos Estados Unidos, Franco diz que é "difícil ter uma receita pronta quanto ao modelo de uma sociedade que resolva todos os problemas sociais".
Temas recorrentes, como queda nos juros e câmbio, deixam Franco quase mudo. "(Baixam) no devido tempo" e "fica como está", afirma. Sobre déficit nas contas externas, a frase é curta, mas enseja alguma possível mudança futura: "Estamos observando".
A seguir, os principais trechos da entrevista:
*
Folha - Existe uma discussão sobre os efeitos da globalização no nível de desemprego e no aumento da massa dos excluídos. Qual a sua opinião sobre isso? Em uma entrevista recente, o presidente Fernando Henrique Cardoso chegou a dizer que é inevitável o crescimento da massa dos excluídos.
Gustavo Franco - Olha, primeiro é preciso entender o fenômeno global, que às vezes não é bem capturado. O que o fenômeno da globalização tem de singular é o crescimento do grau de abertura. Não de países, mas da indústria.
O grau de abertura de países europeus, Estados Unidos, hoje é parecido com o que era em 1914. Agora, na indústria, é várias vezes maior do que era naquela ocasião.
Folha - Então, em termos gerais, eles não abriram muito?
Franco - Na indústria, abriram extraordinariamente. O fenômeno da globalização tem uma dimensão marcadamente industrial. É também financeiro. Mas esse lado industrial é o que motiva a maior parte das ansiedades que eu vejo discutidas, principalmente quando se trata desse assunto emprego.
E, a esse respeito, o que é importante ter em mente é o seguinte: qualquer movimento de abertura desse tipo produz homogeneização entre os parceiros.
Ou seja, dois países iguais que se abram um ao outro vão ficar mais iguais. O processo é cumulativo, gera um processo de integração.
Quando são regiões mais díspares, o processo de homogeneização também acontece. Só que com grande extensões. E é o que acontece quando tem comércio entre, por exemplo, Ásia emergente e Europa. Ásia emergente e Estados Unidos. Brasil e Europa. Brasil e Estados Unidos.
Agora, que tipo de tensão a abertura provoca? Provoca redução do salário onde o salário é maior. E, se isso não acontece, provoca desemprego onde o salário é maior. O resultado de você colocar em contato Ásia com a Europa é gerar redução de salário ou aumento de desemprego na Europa. Não na Ásia. Lá você não tem ninguém reclamando da globalização, assim como não devia ter no Brasil.
Folha - Por falar em Brasil, e aqui, como o sr. analisa o fenômeno?
Franco - Aqui, nós vamos chegar daqui a pouco. Deixa eu primeiro ter o caso geral. Como se trata de Europa, Estados Unidos e regiões emergentes em geral, lá a queixa é que a globalização, a abertura, prejudica alguns setores que sofrem com a competição, segundo eles, desleal das economias emergentes.
Folha - Mas que, no futuro, pode levar a um processo de equilíbrio, ou pelo menos reduzir as diferenças entre regiões do planeta?
Franco - Esse processo é um processo homogeneizador. Agora, onde estão as resistências à globalização? Eu diria que são muito caracteristicamente européias, especialmente na França, em menor escala na Alemanha. São países onde os salários não tiveram nenhuma flexibilidade para serem reduzidos por causa da legislação trabalhista.
Folha - E o caso brasileiro?
Franco - É com esse background que temos de olhar a experiência brasileira. O lado de lá enxerga o Brasil como um país que está fazendo dumping social -tem um salário muitas vezes menor que os salários nos países desenvolvidos, com níveis de produtividades crescentes.
Então, será um competidor cada vez mais ameaçador para muitos países da Europa. Causará desemprego na Europa, redução de salários nos Estados Unidos. E, portanto, haverá um azedume talvez crescente em relação ao Brasil no cenário internacional.
Agora, dentro do Brasil, curiosamente, você tem um fenômeno semelhante entre regiões. No Brasil tem diferenciais de salários entre regiões que são comparáveis aos diferenciais de salários entre regiões desenvolvidas e subdesenvolvidas. O salário em São Paulo pode ser três, quatro, cinco vezes maior do que o do Nordeste.
Na medida em que se tem uma pressão competitiva que atinge a indústria paulista, o desejo de migrar e procurar recompor condições de competitividade provoca isso que estamos vendo, a migração da grande indústria para algumas regiões como o Nordeste e o esvaziamento de São Paulo.
Folha - Migração para onde há um verdadeiro dumping social.
Franco - Não gosto da expressão dumping social. Há salários menores, e o que esse movimento faz é crescer o salário no Nordeste e diminuir o salário ou o emprego em São Paulo. A pergunta é: esse é um processo cruel? Isso deve ser obstaculizado ou não?
Isso está fazendo o Brasil ser mais homogêneo, está reduzindo a desigualdade regional e industrial. Claro que isso não reduz um milímetro a aflição das regiões que estão sofrendo com o desemprego, que é regional e setorial na sua característica. Também não diminui em nenhum milímetro as ansiedades das pessoas envolvidas neste processo do lado perdedor.
Folha - Mas para o país como um todo é saudável?
Franco - Para o país como um todo é saudável, e o que o governo deve se empenhar em fazer é garantir que essas mudanças, que são para o bem do país, não ocasionem sofrimento excessivo nessas regiões perdedoras.
Vamos ter política de emprego. Essa política passa pela legislação trabalhista. Não há outra coisa a fazer, a legislação trabalhista é que permitirá que as empresas possam empregar mais gente nessas regiões com problemas.
Regiões onde, às vezes, você tem dois lados (trabalhadores e empresários) querendo flexibilizar a legislação para preservar o emprego e não podem fazer acontecer porque o tribunal não deixa, como foi o clássico caso do acordo da Força Sindical. O que deu origem à lei do contrato temporário, que está prestes a ser aprovado no Senado. Eu acho que vai ser uma beleza.
Folha - Não é paradoxal que na França, e em outros países, possam enxergar o Brasil como um local onde se pratica dumping social ao mesmo tempo que aqui a legislação é pródiga em oferecer direitos aos assalariados?
Franco - Olha, eu não gosto dessa expressão dumping social, porque essa é a expressão do lobista do Norte para obter proteção contra as nossas exportações. No Norte tem essa conversa de dumping social. Não tem nada disso.
Folha - Em alguns lugares ela é válida ou não?
Franco - Existem diferenças de renda entre países que provocam o comércio internacional.
Folha - O Brasil também sofre em relação a isso...
Franco - Sofre muito menos. O valor da hora de trabalho de um torneiro mecânico na China, no Brasil e na Alemanha, por exemplo. Provavelmente aqui é maior do que na China, mas na Alemanha é várias vezes maior do que aqui. Essas diferenças é que provocam o comércio da globalização, e essa globalização homogeneíza essas diferenças, não tenho dúvidas.
Folha - Mas, com as novas tecnologias, com a globalização, não há uma tendência de aumento da massa dos excluídos, daqueles que não tiveram acesso a uma educação apropriada?
Franco - Nos Estados Unidos não tem massa de excluídos. Você pode ter desemprego e problemas sociais gerados pelas mais variadas origens, mas dizer que você tenha lá os excluídos da globalização, eu tenho muitas dúvidas.
Folha - Os EUA, que são uma das matrizes de modelo liberal, têm um problema crônico, pois nunca conseguiram evitar os excluídos. No início dos anos 90 havia lá 31 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza...
Franco - Não vamos exagerar e achar que os Estados Unidos são um modelo fracassado.
Folha - Não, pelo contrário, é o mais bem-sucedido de sociedade liberal...
Franco - Se conseguirmos esse estágio (dos Estados Unidos) será um grande progresso.
Folha - Mas os EUA convivem com essas contradições do sistema. Nós teremos que conviver sempre com elas?
Franco - Olha, a pobreza, os problemas sociais têm muitas origens e algumas delas são econômicas, talvez a maior parte delas. Mas nosso assunto aqui é globalização, em que medida a globalização é responsável pela pobreza nos Estados Unidos. Diria que muito pouco. Eu acho que ela pode ser responsável pelo desemprego na Europa em muito maior escala que nos Estados Unidos.
Que a globalização seja responsável pelo desemprego no Brasil, eu acho também muito questionável, será possivelmente em algumas regiões e em outras regiões será exatamente o contrário, está produzindo emprego, inclusão. Então é uma resposta difícil de se dar, difícil de se ter uma receita pronta quanto ao modelo de uma sociedade que resolva todos os problemas sociais.
Folha - Mas esse é um problema crescente no mundo. Qual a sua visão sobre como deve ser uma política governamental na área social? O Estado tem de atuar diretamente para proteger as camadas mais pobres da população?
Franco - Claro. Mas isso não tenho a menor dúvida. Claro que tem. E é exatamente por isso que eu acho que o Estado não deve produzir energia elétrica, ter indústrias siderúrgicas ou ferrovias. Essas coisas todas são feitas em detrimento de gasto social.
Cada sociedade deve decidir se quer produzir aço ou se quer gastar dinheiro com escolas. Construir hospital ou ter banco. Drama que certamente vários governadores estão enfrentando: se vão colocar dinheiro em seu banco ou tratar da saúde de seus contribuintes.
Folha - O sr. apoiaria, por exemplo, um programa do tipo bolsa-escola em todo o país, bancado pela União. O sr. acha que isso pode ser uma solução?
Franco - Em abstrato, qualquer programa social é sempre bom. O difícil é como fazer um programa social com restrição de recursos. E aí entramos nós, chatos tecnocratas, sempre a dizer que se você vai fazer uma política social para a qual não há recursos, o recurso vai vir do imposto inflacionário, que é uma política anti-social. Você vai destruir o que vai fazer com a outra mão. Não tem cabimento.
Agora, em se tratando de escola, olhando simplesmente pelo dispêndio, o que chama a atenção de qualquer técnico é a desproporção do gasto que é feito em universidades relativamente ao resto. Isso tem muito a ver com a determinação do ensino universitário gratuito, que é constitucional.
Tendo vivido numa universidade muito tempo, tenho uma certa dificuldade de entender tendo em vista as pessoas que frequentam as universidades. Eu acho que não tem cabimento esse tipo de gratuidade para a elite. Esses recursos poderiam estar sendo utilizados na bolsa-escola ou em qualquer outro programa com benefício um pouco mais extenso.
Folha - O sr. defende então uma mudança constitucional que permita o ensino universitário pago para destinar esses recursos a outras áreas?
Franco - Claro. O drama da política social não é tanto escolher os programas, são as restrições de recursos. A sociedade deve prestar atenção em como mais bem utilizar recursos que são escassos e não reclamar da sua escassez como um artificialismo imposto pelos tecnocratas.
A escassez de recursos existe porque o BC não pode fabricar dinheiro. E dinheiro não nasce em árvore. O dinheiro é o dinheiro dos impostos, que é limitado e tem muitas agendas para cumprir.
Folha - Como o sr. analisa o cenário eleitoral para o ano que vem?
Franco - O processo eleitoral deverá transcorrer com muito mais serenidade do que no passado. Estamos vivendo um momento de estabilidade. Não creio que nenhuma candidatura esteja propondo uma subversão radical das regras econômicas, como foi o caso das eleições anteriores -que ocorreram num momento de crise, de transição, com candidaturas que representavam projetos opostos para a economia.
Nessa eleição, todo mundo será basicamente a favor do Real, mas com variadas formas de dizer coisas muito parecidas com as que nós estamos dizendo. Apenas com mais mau humor, mais truculência ou mais lágrimas nos olhos. Mas, no fundo, coisas parecidas.
Folha - Quem vai ser truculento e quem vai ser mal-humorado?
Franco - Isso é por sua conta. Agora, essencialmente, esse cenário visto do exterior vai ser muito bem visto. O que se tem é a sensação de continuidade do processo democrático na sua plenitude e mais bom senso.
Folha - Na hipótese de um segundo mandato para o presidente Fernando Henrique Cardoso, o que o sr. aperfeiçoaria?
Franco - Eu não vejo no segundo mandato nenhuma mudança de filosofia.
Folha - Mas o que poderia ser aperfeiçoado?
Franco - Você vai, talvez, começar a desenvolver programas em áreas onde ainda eles não foram tão agressivos, onde as atividades ainda vão florescer e novos programas vão acontecendo. Por exemplo, na área da infra-estrutura. Todo mundo ganhou experiência e vai fazer as coisas de uma maneira melhor.
Folha - Na sua área, então, para ser mais específico?
Franco - O BC já terá deixado para trás o ajuste do sistema bancário privado, e, espero, boa parte do ajuste do sistema bancário estadual. Também já provavelmente terá deixado para trás muitas das ansiedades que consumiram as pessoas nos primeiros anos do Plano Real -juros elevados, câmbio. Será um momento de consolidação da estabilidade.
Folha - O que o sr. não repetiria em um segundo mandato?
Franco - Veja, as circunstâncias que nós tivemos que lidar nesse primeiro mandato foram excepcionais. Começa o governo com um programa de estabilização. Nós não vamos ter essas circunstâncias para responder, não teremos a crise bancária de novo para responder. Então, é difícil responder a isso.
Folha - O sr. já teve alguma aspiração política na vida?
Franco - Não. Tiveram por mim, mas eu não tenho interesse. Sou filiado ao PSDB desde, eu acho, 1988.

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