São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Um momento de Capra

STANLEY CAVELL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma certa complacência indiscriminada diante do cinema e da sua pretensão a ser tomado em pé de igualdade com as artes clássicas da narrativa e do espetáculo não é de todo ausente dos círculos acadêmicos -falo aqui da minha experiência norte-americana. Da minha parte, não sei se é o caso de dizer que, em termos proporcionais, há mais filmes ruins do que há romances, poemas ou pinturas ruins. Mas bem valeria investigar se mais facilmente admiramos filmes ruins do que romances, poemas ou pinturas idem; talvez sequer saibamos o que, afinal de contas, admiramos ou adquirimos quando nos sujeitamos ao cinema.
Seja como for, o efeito de contraste criado por essa complacência indiscriminada -esse filistinismo, para usar um termo mais adequado- ao menos chama a atenção para um fato óbvio, banal e desdenhado: tão-somente por via de nossas reações particulares e concretas a certos momentos deste ou daquele filme, bem como por via do exame crítico e teórico desses encontros, é que poderemos desenvolver uma convicção genuína da dignidade do cinema enquanto objeto de estudo.
Para dar um exemplo dessa espécie de exame, escolhi um momento de "Aconteceu Naquela Noite", de Frank Capra, o filme hollywoodiano de maior destaque em 1934, estrelando Clark Gable e Claudette Colbert; um momento cuja aparente trivialidade ou evanescência não pôde ser tratada no longo e difícil capítulo que dediquei ao filme em meu livro "Pursuits of Happiness - The Hollywood Comedy of Remarriage" (À Procura da Felicidade - A Comédia de Segundas Núpcias em Hollywood, Harvard University Press, 1981).
Nessa cena, um homem e uma mulher, de costas para os espectadores, caminham por uma estrada campestre vazia. A cada vez que assistia ao filme, eu sentia uma alegria obscura e nervosa em reação a esse momento, que adquirira para mim a força de emblema. Ainda assim, não fui capaz de encontrar palavras para incluí-lo em meu exame crítico. Vim a encontrá-las mais tarde, durante um dos meus cursos, e agora aceito de bom grado o convite a contribuir para estas páginas como ocasião de testá-las mais abertamente (1).
A cena com o casal na estrada acontece ao amanhecer, logo após uma sequência em que os dois passam a noite em campo aberto, dormindo sob um céu estrelado e poeticamente enquadrado, fazendo o possível para escapar à consciência de sua atração mútua. No livro que acabei de citar, falei do "transcendentalismo americano das tomadas exteriores de Capra". Ao alinhar assim a obra de Capra com o pensamento de Emerson e Thoreau, eu tentava localizar as emoções características de Capra: a experiência extática de uma possibilidade, de um mundo melhor adjacente ao nosso e ao qual este último remete por meio de símbolos comezinhos; um mundo (de união amorosa, de justiça social) que quase poderíamos tocar, se ao menos... Minha sugestão se formara a partir de uma série de tomadas de Claudette Colbert escutando uma divagação meditativa de Clark Gable, que evoca "aquelas noites em que você e a lua e a água tornam-se uma coisa só e você sente que é parte de algo grande e maravilhoso".
Essa divagação parecia-me (e imagino que também para a personagem de Colbert) expressão de alguma velha fantasia daquele homem, estimulada pela lembrança ainda vívida da noite que os dois haviam passado sob as estrelas, cada qual de um lado do monte de feno. Em si mesma, a descrição não vai além do lugar-comum envelhecido, de embaraçosa banalidade. Mas na recitação enlevada de Gable, e endossadas tanto pela reação igualmente enlevada de Colbert quanto por nossa memória da sua chegada ao campo iluminado pela lua, após terem atravessado um córrego semeado de estrelas refletidas, as palavras ganham o peso de uma passagem tirada de "Walden". O córrego de Capra é pontilhado de estrelas, semelhante ao que Thoreau chama de "água celestial" ("sky water").
Os momentos transcendentais de Capra derivam em parte do cinema expressionista alemão (assim como o pensamento transcendental de Emerson e, por extensão, de Thoreau derivam parcialmente da filosofia alemã): estabelece-se uma correspondência entre o estado de espírito do personagem e o cenário em que este se encontra. Mas os cenários alemães tendem ao encerramento opressivo, ao passo que os de Capra tendem ao anseio expansivo. Para quem não se permite ou não é dado a tal estado de espírito, esses momentos de Capra não deixarão de provocar risos à socapa, algo assim como uma emoção sem suporte. Os momentos no córrego e no campo aberto exigem que avaliemos qual uso dar às nossas fantasias adolescentes de libertação; é provavelmente a aderência de Emerson e Thoreau a esse nível de paixão que, creio eu, acaba por barrar sua admissão à companhia dos filósofos sérios.
O momento (ou tomada) sobre o qual estou me concentrando aqui -a caminhada matinal depois da noite em campo aberto- dura menos de 30 segundos, durante os quais o casal mantém a seguinte conversa (é a mulher que fala primeiro):
"- O que é mesmo que nós supostamente estamos fazendo?
- Caroneando ("hitch-hiking").
- Ah, sei. Bem, já andamos bastante ("to hike"), mas quando é que entra a carona ("to hitch")?
- Bem, é meio cedo ainda para os carros passarem.
- Se não faz diferença para você, eu vou me sentar bem aqui e esperar até que eles apareçam".
A despeito do que eu seguia sentindo como o "nada" da cena -em vista da parcimônia das imagens, do convencionalismo das palavras, da aparente brusquidão dos personagens-, o tom transcendental da sequência noturna parecia persistir na manhã cinzenta. Por fim, vim a pensar que ela decerto persistia: a intensidade da noite anterior, sublinhada de modo expressionista, não abandonou nem a nós nem a eles. O que não seria mais que natural: a sequência anterior chegara ao clímax num close-up dos dois personagens resistindo ao desejo de se abraçarem -sem que se desse o desfecho. Mas então pensei: não, aquele tom persiste não como memória, mas como presente; ele persiste, sob nova coloração, no novo cenário matinal.
O convencionalismo, a parcimônia, a brusquidão mesma devem ser entendidas à luz do mesmo fervor expressionista da noite enluarada. É claro que, no novo cenário, o cosmo não será conivente com as palavras pronunciadas: estas sim é que buscam mal e mal velar a atração exercida por aquela mesma tonalidade. Mesmo o contraste entre os modos do casal -ele, algo deprimido, ela, um tanto frenética- sugere a mesma intenção de velar, de ocultar. Assim é que os imagino caminhando juntos, mas cada qual se mantendo apartado, pensando um no outro, tentando habituar-se ao que ocorreu entre eles e à consciência da situação alheia -incluída aí a resistência a pôr tudo às claras.
Minha hipótese crítica é de que esse modo de ver não é apenas uma suposição sobre como se sente ou deve se sentir o nosso casal, baseada em minha compreensão psicológica do seu relacionamento; creio antes que esse modo de ver parte de uma leitura, de uma percepção disso que, especificamente nessa cena bem à nossa frente (e, digamos, que em evidência completa), estou chamando de "tom transcendental" ou, por outra, de "nada". Devo agora explicitar essa leitura em apoio à minha hipótese. Minha descrição inicial do momento em questão foi tão discreta quanto possível, de modo a camuflar os termos que utilizei: um homem e uma mulher, de costas para os espectadores, caminham por uma estrada campestre vazia. De modo a examinar esse momento com mais vagar, prefiro rearranjar e recortar os termos da descrição: de costas para os espectadores/ juntos/ caminhando/ por uma estrada.
Tenho a impressão de que, de modo geral, a tomada de uma figura humana inteiramente de costas tende a sugerir uma inflexão de isolamento e vulnerabilidade, de reflexão solitária, de capacidade ou necessidade de pensar com os próprios botões. Imagino que todos recordem tomadas análogas de "O Vagabundo", de Charles Chaplin, distanciando-se por uma rua vazia. Tomadas assim fazem parte daquele grupo de imagens cinematográficas sublimes figurando isolamento, vulnerabilidade e também esperança; mas vale ainda notar que tais imagens parecem, quase que por natureza, constituir a cena final de um filme. Mas, então, o que uma delas está fazendo no meio de "Aconteceu Naquela Noite"? Em outros termos: como e por que essa tomada específica, neste contexto específico, evoca e inflete o acervo de imagens análogas que funcionam como cenas finais?
O pivô da inflexão está em que, ao mesmo passo que se mantêm apartados, cada qual pensando com seus próprios botões, os dois personagens movem-se na mesma direção, para longe de nós, espectadores. Um traço essencial do gênero da comédia de segundas núpcias, tal qual o defini, é a indicação final de que o casal central, ao reingressar no matrimônio, está cruzando um limite que nos exclui -mas sem que se abracem, sem que nos assegurem ou sinalizem que encontrarão (ou reencontrarão) a felicidade.

Continua à pág. 5-9

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