São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Os signos divinos

LUIS S. KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O helenista e filólogo alemão Walter Burkert, hoje o maior estudioso da antiga religião grega, está em São Paulo até o dia 20 deste mês, a convite da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde está ministrando um curso. Recentemente aposentado da Universidade de Zurique, Burkert foi também professor em algumas das melhores universidades americanas -como Harvard, Princeton e Berkeley- e escreveu mais de uma dezena de livros acerca da vida religiosa e da magia entre os antigos helenos.
Seu trabalho mais famoso, utilizado por especialistas tanto quanto por interessados em geral, é "Greek Religion". Escrito originalmente em alemão em 1977 e totalmente revisto por ocasião de sua edição em inglês em 1985, já é um clássico dos estudos clássicos. Foi traduzido para o português em 1993, com o título "Religião Grega na Época Clássica e Arcaica" (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa).
"Homo Necans" ("O Homem Destruidor"), de 1972, foi talvez o seu trabalho mais polêmico e original, e ponto de partida para sua pesquisa de caráter antropológico. Nele o autor aborda o surgimento do fenômeno religioso a partir de suas origens sangrentas -notadamente o sacrifício humano.
A característica mais marcante da obra como um todo deste helenista alemão é a combinação entre a erudição, o rigor acadêmico e a compreensão intuitiva dos fenômenos irracionais. Abstendo-se dos vôos de imaginação que marcam os trabalhos de tantos estudiosos do assunto, Burkert afirma só o que pode ser comprovado por testemunhos seguros -desde inscrições lapidares a fragmentos de vasos, e desde trechos de poesia grega até comentários medievais à literatura clássica.
Outro título seu traduzido para o português, em 1991, é "Antigos Cultos de Mistério" (Edusp), no qual ele faz um retrato ao mesmo tempo psicológico e arqueológico das iniciações no mundo antigo.
Leia a seguir a entrevista que Walter Burkert concedeu à Folha em São Paulo.
*
Folha - Que significado tem para a humanidade de hoje a religião da antiga Grécia?
Walter Burkert - Não creio que haja um significado direto. Os deuses gregos são sobretudo signos de uma tradição cultural, de grande importância para as artes plásticas e para a poesia, mas a religião como tal não pode ser revivida. Afinal, há mais de 2.000 anos de cristianismo nos separando desta tradição. Seria impossível reintroduzir estes cultos na atualidade. Não obstante, o estudo da antiga religião grega pode trazer elementos significativos para a compreensão da nossa cultura.
A antiguidade é um patrimônio cultural do qual nos afastamos cada vez mais -e ainda mais no Brasil do que na Europa, onde os testemunhos deste passado estão mais presentes. É verdade que também no Brasil elementos desta cultura estão presentes, via Europa. Vocês têm cidades como Salvador e São Paulo, cujos nomes estão intimamente ligados a esta herança cultural. A noção do Salvador ("soter", em grego), de alguém que poderá salvar a humanidade, é central na religião grega, desde o antigo culto aos reis, e também no cristianismo. Já o apóstolo Paulo escreveu em grego e derivou suas noções da tradição judaica. Toda a tradição cristã é tributária da Grécia antiga, assim como da cultura judaica que floresceu na Palestina.
Folha - Mas, enquanto formas arquetípicas, estes deuses gregos têm algum significado atual?
Burkert - A presença dos deuses gregos na poesia, especialmente em Homero e na tragédia, está associada à presença de categorias ainda hoje fundamentais à nossa visão de mundo. Trata-se de forças ainda hoje percebidas como sobre-humanas e que na poesia e tragédia grega estão sempre muito presentes. Amor e sexo como algo maior e impessoal são conceitos compreensíveis para o homem de hoje, assim como a deusa Afrodite o era para os gregos antigos.
As maneiras como os homens reagem à autoridade encontram paralelo nas atitudes dos antigos diante de Zeus. Esta presença divina pode dar-se de maneira explícita, como no caso de "As Bacantes", de Eurípides. Nesta tragédia há uma explosão de irracionalidade contra a ordem estabelecida, patrocinada por Dioniso, deus que aparece primeiro disfarçado e depois em sua forma verdadeira.
Mas a presença da divindade na tragédia pode dar-se também de maneira implícita. É o caso de "Édipo Rei", de Sófocles, onde Apolo está sempre no pano de fundo e fala por intermédio de seu oráculo. O fascínio desta peça deve-se justamente à contraposição que faz entre o saber divino, a profecia e o esforço humano, no sentido de evitar a concretização desta profecia. Ao fim, depois de cegar seus próprios olhos, Édipo se dá conta de que o responsável por tudo é Apolo. O saber e o poder divinos triunfam sobre a ação do homem.
Estas e outras tragédias ainda hoje são representadas no mundo inteiro e não perderam nada de sua força. Nesse sentido, pode-se dizer que os deuses gregos têm importância para o homem moderno, embora o politeísmo tenha sido banido da Europa. A força dos deuses da Grécia não está na forma de uma religião determinante. Eles são uma maneira de interpretar a experiência humana e, além disso, são formas por meio das quais podemos compreender a cultura antiga.
Folha - Então os deuses deixaram de ser deuses e tornaram-se categorias de interpretação e representação da realidade?
Burkert - Sim, pois para continuarem como deuses necessitariam também os rituais e festas essenciais a uma religião viva. Os ritos e festas são estratégias de administração do mundo, diante de ameaças como fome, guerra, doenças. As doenças eram sempre atribuídas pelos antigos à ira de algum deus -como, por exemplo, no primeiro livro da "Ilíada", em que a pestilência que se abateu sobre os argivos é atribuída ao rapto da filha de Crísis, o sacerdote de Apolo.
Os sacerdotes e videntes tinham como responsabilidade descobrir as formas para aplacar a culpa que gerou a ira de determinada divindade. Curiosamente, essa mesma noção de que as epidemias têm uma causa extraterrestre encontra-se presente hoje na atitude de muitas pessoas diante da Aids. Muita gente afirma que a causa desta doença encontra-se além da ciência. A culpa, para alguns, estaria na transgressão de determinados tabus sexuais, enquanto outros a atribuem à influência de forças do mal -desde o próprio demônio até a CIA ou o Pentágono, que teriam posto em ação algum plano maligno. O homem parece ainda precisar deste tipo de crença em forças sobrenaturais complementares.
Folha - O sr. acha que existe hoje uma tendência ao desaparecimento das religiões no Ocidente?
Burkert - Vive-se um momento de crise religiosa. A parte dogmática do cristianismo, por exemplo, não é mais aceita, e noções como a imortalidade e o renascimento estão em xeque. Por outro lado, aqui em São Paulo vocês recentemente assistiram a uma manifestação religiosa com 400 mil pessoas, e a vinda do Papa mobilizou centenas de milhares de pessoas no Rio.
A religião exerce um poder significativo sobre o mundo de hoje. Veja o que acontece na Rússia, onde o catolicismo ortodoxo está passando por um grande florescimento, após décadas de opressão do comunismo. Está renascendo com muita força. O próprio Ieltsin recentemente promulgou um decreto de apoio aos ortodoxos. A religião como tal não está em crise. O que pode estar em crise são determinados dogmas de determinadas igrejas. É por isto que surgem novas religiões.
Um dos dogmas em crise é a crença metafísica na imortalidade da alma. Aproxima-se o fim da filosofia platônica e aristotélica, central à teologia cristã. A tese central desta metafísica foi formulada por Platão, que postulou a preponderância do espírito sobre a matéria, e supôs que a alma, como portadora do espírito, necessariamente seria independente do corpo. Daí a noção de imortalidade da alma. Ligadas ao cristianismo, estas teses não são mais aceitas como verdade. Isso se deve, em parte, ao avanço da ciência e ao conhecimento cada vez maior dos processos químicos e elétricos do cérebro humano. Por outro lado, os computadores demonstraram que é possível um modelo de pensamento não-espiritual. Com isto, o modelo metafísico platônico e aristotélico tornou-se muito problemático.
Folha - Ao contrário do que acontecia no mundo antigo, assistimos a uma separação crescente entre as esferas do sagrado e da vida cotidiana...
Burkert - No mundo antigo a religiosidade e a vida social estavam imbricadas e eram inseparáveis. A religião era uma forma de comunicação social. Mas desde o final da Idade Média a religião e o cotidiano se separaram. No fenômeno da "pólis" grega os homens encontravam-se diretamente ligados à esfera divina. A vida pública estava ligada diretamente aos deuses. O calendário era definido pelas festas religiosas. Os funcionários da "pólis", como os efebos, tinham a obrigação de realizar as festas religiosas. Mesmo na vida econômica estes deuses estavam presentes, já que os negócios eram selados por meio de um juramento perante algum deus. A ágora, praça do mercado, era sempre cercada de santuários de deuses. Se hoje nós selamos um negócio com um aperto de mãos ou, como se fazia até recentemente, com um trago de bebida, naquela época o selo era o juramento perante a divindade.
Num mundo como este não seria concebível ser ateu. Quem fosse ateu estava automaticamente excluído de todos os processos sociais. A religiosidade, ao contrário do que acontece hoje, não ficava restrita a um lugar marcado.
Folha - Como se deu a substituição dos ritos pagãos pelo cristianismo, na Europa?
Burkert - Muitos dos elementos das antigas religiões pagãs foram incorporados ao cristianismo, especialmente na igreja oriental. Ainda hoje, em países como a Grécia e a Armênia, são comuns os sacrifícios de animais depois da missa, aos domingos, e a realização de refeições comunitárias com a carne do animal sacrificado.
Outro aspecto das religiões pagãs que sobreviveu com toda a força no cristianismo é a crença no poder curativo dos heróis ou mártires, que foi objeto de acirradas disputas. Santo Agostinho, em suas pregações, exortava seus contemporâneos a confiarem nos mártires do cristianismo -e não nos heróis pagãos- quando se tratava de tentar obter cura de doenças. Originalmente esta crença no poder curativo de um mártir ou herói está associada à idéia de doença como castigo que um deus inflige à população em decorrência de alguma transgressão. É por isso que se recorria aos templos para tentar obter a cura. Esta ligação não está mais presente no cristianismo, mas o recurso aos santos para curar doenças é frequente ainda hoje, mesmo na Europa.
Folha - Como o sr. se coloca no panorama atual dos estudos clássicos, e relativamente a dois estudiosos bastante conhecidos no Brasil -Jean-Paul Vernant e Martin West?
Burkert - Eu me situaria a meio caminho entre Martin West e Jean-Paul Vernant, que são dois extremos opostos no cenário contemporâneo dos estudos clássicos. O que Vernant faz é classificado no mundo de língua alemã como antropologia cultural. Ele tem uma formação filosófica e sociológica, parcialmente ligada às teses marxistas -embora ele seja um espírito por demais independente para poder ser classificado como marxista. Trata-se de um professor cheio de vitalidade, um verdadeiro "pater familias", que agrega à sua volta um vasto grupo de estudantes e discípulos.
Vernant aplicou o estruturalismo à interpretação da iconografia e da vida e pensamento dos antigos gregos. No centro de seus estudos está o conceito de "pólis", em que o sacrifício ocupa um lugar central. Seu trabalho é muito significativo do ponto de vista espiritual e social. Interpretar a arte a cultura grega com o refinamento dos estruturalistas foi uma das contribuições mais interessantes aos estudos clássicos de nosso tempo.
Martin West, por sua vez, é um "scholar" formado na mais rígida tradição filológica de Oxford. Conhece a língua e a literatura grega como ninguém, e acho que eu não estaria exagerando se dissesse que ele sabe de cor toda a poesia grega. Hoje ninguém conhece a língua grega melhor do que ele e por isso ele é o nome mais qualificado para editar poesia grega. Argumenta com total independência e suas edições de elegias, iambos, Hesíodo, Homero e Ésquilo são impecáveis.
Ultimamente ele vem pesquisando também a literatura do Oriente próximo, e suas relações com a literatura grega. Seu último livro, intitulado "The Eastern Face of Helicon", é inteiramente dedicado a esse assunto. Ele traça paralelos entre a literatura grega e a literatura acádica, hitita e mesmo bíblica e egípcia. Meu estudo a respeito, "The Orientalizing Revolution", de 1992, o influenciou nesta linha de pesquisa. West dirige-se a especialistas e por isso ele tem um público mais restrito. Sua atividade como docente também é mais limitada. Seus livros de interesse geral são poucos. É um isolacionista que tem um conhecimento incomparável.

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