São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997 |
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A química do espírito
MARC RAGON
Ela veio ao mundo pelas mãos da linguística: o denominador comum das escolas analíticas é o estudo da linguagem, definida como suporte de uma análise do espírito. A linguagem é uma noção que não abrange apenas a prática de uma língua, o sentido de uma frase, o significado de uma palavra, a expressão de um enunciado, a verdade de uma afirmação, mas também tanto a linguagem comum (centro dos interesses de Austin) quanto uma lógica dos signos: a filosofia analítica fará nascer o estudo do pensamento por intermédio da linguagem do computador, e este servirá de metáfora do funcionamento do cérebro, o qual, por sua vez, se tornará a realidade material do pensamento. No interior desse círculo, surgiram inúmeras definições possíveis e por vezes imprudentes do espírito. John Roger Searle, 65, professor de "filosofia do espírito e da linguagem" em Berkeley (Califórnia), lança um olhar crítico sobre tais resultados numa de suas últimas obras, "A Redescoberta da Mente" (recém-lançado no Brasil pela Ed. Martins Fontes). Searle nasceu em Denver (Colorado) e estudou em Oxford, onde foi aluno de Austin e defendeu sua tese de doutorado. Isso foi em 1959, quando tinha 27 anos, e seu tema era "On Sense and Reference" (Sentido e Referência). Em seguida mudou-se para a Califórnia, onde leciona desde então em Berkeley. Foi professor visitante em diversas universidades (Noruega, Brasil e outros países da Europa), proferiu conferências no Collège de France, em Paris, e realizou várias palestras em Roma. Em "A Redescoberta da Mente", Searle não se despoja do estilo claro e coloquial que sempre o distinguiu dos outros filósofos analíticos e que confere a algumas de suas propostas a impressão de uma jovial insolência, acentuada pelo hábito irreprimível de interpelar seus colegas contemporâneos para denunciar-lhes os sofismas e as contradições. A tal impressão de insolência corresponde uma crítica cuja audácia, esta sim, é bastante real: segundo Searle, as correntes filosóficas americanas atualmente em moda, que gravitam ao redor da tradição analítica e se pretendem categoricamente emancipadas da filosofia clássica e européia, não passariam na verdade de herdeiras da filosofia cartesiana. "Como explicar a grande variedade a que nos convida nossa vida mental -dores, desejos, prazeres, pensamentos, experiências visuais, crenças, gostos, odores, ansiedade, medo, amor, ódio, depressão e alegria?" As diversas disciplinas de renome no mundo da filosofia inglesa não teriam sido capazes de encontrar uma ontologia satisfatória do espírito, suscetível de fornecer uma resposta a esse tipo de questões. Tais disciplinas revelam uma visão radicalmente dualista e reproduzem o mesmo preconceito de Descartes -ou seja, a impossibilidade de se conhecer os fenômenos da consciência-, dissimulado sob diversas roupagens: o "materialismo eliminacionista", que supõe "a inexistência dos estados mentais"; a teoria segundo a qual "a psicologia popular é falsa"; a idéia de que "os pretensos estados mentais não possuem nada de especificamente mental"; o princípio que estabelece uma estrita equivalência entre o computador e o pensamento; o ponto de vista segundo o qual "o vocabulário mental não passa de uma maneira de falar"; enfim, a concepção que supõe "a inexistência absoluta" da consciência. Essa enumeração abarca todo o campo da filosofia anglo-saxã, incluindo os cognitivistas, a linguística de Chomsky, a epistemologia de Feyerabend e Rorty, os pesquisadores da inteligência artificial como Daniel Dennet, os "filósofos do espírito" (Churchland, Gardner, Minsky ou Fodor) e demais filósofos analíticos de renome, como Thomas Nagel, Hilary Putnam ou Stich. Além de afirmar a impossibilidade de se conhecer a consciência, numerosas correntes da filosofia analítica desenvolveram uma concepção "materialista", assimilando a consciência tanto ao computador quanto ao funcionamento dos neurônios, o que resulta na negação de sua existência: em vez de se perguntarem em que aspecto um fenômeno consciente não constitui uma realidade não-consciente, tais correntes investigam como é possível saber se os sistemas inteligentes podem ser compostos de matéria não-inteligente. Searle replica: "Para mim, minha dor, em seu estado presente, é uma característica de meu cérebro, de nível superior". A consciência da dor é uma realidade necessariamente subjetiva e não objetiva ("minha" dor); é uma consciência temporal ("em seu estado presente") e portanto não uma entidade fixa, pertencente a um mundo imóvel; é, enfim, uma característica de meu cérebro, isto é, uma propriedade causada por ele, mas que não se reduz a ele ("de nível superior"). As opiniões de Searle abrem brechas na torre de marfim da filosofia anglo-saxã, na qual os fundadores da filosofia não são os gregos da Antiguidade, mas um trio contemporâneo do começo do século -Frege, Russell e Wittgenstein: a filosofia analítica seria uma "ciência" cujo acesso está condicionado à aceitação de que não existe outra filosofia digna desse nome, seja ela batizada de fenomenologia, existencialismo, estruturalismo, hermenêutica etc.; ela seria definida, além do mais, como a única fonte de um saber autêntico sobre a língua e a linguagem, relegando a linguística a uma posição ancilar; ela obedeceria, enfim, a procedimentos essencialmente técnicos que isolam a língua e sua prática de qualquer "impureza" de ordem psicológica, sociológica, etnológica ou mesmo política e ideológica. A entrevista que segue mostra, no entanto, que John Searle não está "no ventre do monstro para poder assim matá-lo com mais facilidade". Para ele, pelo contrário, a filosofia analítica tem um belo futuro pela frente: se a seus olhos ela merece uma crítica ferrenha, isso ocorre porque nela ele reconhece o único caminho possível para uma filosofia que seja autenticamente "atual" e "universal" -desde que ela saiba tirar lições dos progressos da ciência e de seus próprios vícios históricos relacionados à sua natureza e a seu objeto. * Pergunta - A filosofia analítica dá uma definição de espírito muito mecanicista, contra a qual o sr. se mostra particularmente hostil. John Searle - Sim, na minha opinião deve haver um fosso entre as causas da ação e a escolha propriamente dita. De outro modo, jamais poderíamos dar um sentido a nossas vidas. Isso se torna claro com um exemplo dos mais banais: você entra num restaurante, olha o cardápio e vê que há contra-filé e rim de vitela. Você tem de escolher. É impossível dizer: "Sou movido por uma lógica prévia, portanto posso esperar e ver o que escolherei". É preciso escolher e para isso se deve agir. Pergunta - O exemplo que acaba de dar é de fato banal, e esta é uma prática difundida entre os filósofos analíticos. Ora, as questões de que se ocupam os filósofos não devem ser mais "importantes", de ordem moral ou filosófica? Searle - De minha parte, considero que a filosofia deve explicar a vida cotidiana. Não é necessário falar sempre do "homem pós-industrial na situação do capitalismo tardio". Devemos ser capazes de descrever situações tais como "tomar uma cerveja" ou "andar a pé". Do meu ponto de vista, o campo da filosofia abrange tudo, mas deve começar pela vida cotidiana, a de qualquer pessoa. Pergunta - Mas o que distingue então a filosofia da ciência? Searle - Eu não faço essa distinção. Para mim, existe apenas o conhecimento. A maioria das questões que me interessam corresponde ao que os diretores da universidade afirmam ser filosóficas, mas fazer uma distinção entre filosofia e ciência é o trabalho dos burocratas, e isso não me diz respeito. Mas, no fundo, as questões que me interessam -como o livre-arbítrio, o conceito de espírito, a relação entre o espírito e o cérebro- são questões que se consideram tradicionalmente como filosóficas. Pergunta - Em "A Redescoberta da Mente", o sr. analisa entretanto a relação entre o cérebro e o espírito em termos bastante clássicos e familiares ao espírito europeu, uma vez que a referência básica é Descartes. Searle - Meu objetivo é abandonar as categorias tradicionais da alma e do corpo. Procuro ver a consciência como um fenômeno biológico natural. E isso significa justamente esquecer e superar Descartes e toda a tradição histórica que veicula a idéia de que existe algo exterior ao mundo natural. Toda explicação psicológica e da intencionalidade está baseada na consciência. A consciência concebida como um fenômeno biológico é a melhor maneira de se estudar o espírito. Ela serve como uma base que me permite criticar os modelos contemporâneos da ciência cognitiva. A ciência cognitiva contemporânea considera que a explicação básica da consciência repousa sobre elementos inconscientes. O modelo básico de explicação é a existência de processos inconscientes que não são acessíveis nem à consciência nem à neurobiologia. O conjunto dos modelos de explicação que encontramos em Chomsky ou em qualquer modelo da ciência cognitiva parece-me incoerente, pois postula um nível de inconsciência que é por princípio inacessível à consciência. Demonstro nesse livro a incoerência dessas teorias pelo fato de a referência básica ser tanto o cérebro quanto a consciência -que afinal é uma propriedade do cérebro. Não me refiro ao inconsciente freudiano, pois no caso da psicanálise o inconsciente é acessível à consciência. Mas, no caso de Chomsky e de outros, trata-se de uma inconsciência situada entre o nível da consciência e o do cérebro: entre os dois, em suma, existe um grande zoológico no qual há modelos mentais, uma gramática universal, a linguagem do pensamento etc. Meu argumento é que isso não existe, que não há jardim zoológico algum entre o cérebro e a consciência. Proponho, pelo contrário, uma descrição da consciência que está mais próxima da teoria de Darwin: o cérebro desenvolve-se em Searle às necessidades da intencionalidade, sem postular necessariamente um mecanismo inconsciente no cérebro. Pergunta - O sr. atribui a origem desse dualismo entre o cérebro e o espírito a Descartes. Mas como o sr. definiria tal relação? Searle - A relação entre o espírito e o cérebro é causal. Quando me belisco, são transmissões químicas que chegam a meu cérebro e fazem com que tenha a sensação de dor. Mas do começo ao fim há uma relação causal, e é isso o que oponho à concepção cartesiana. Tenho dois slogans: o cérebro é a causa do espírito, e o espírito é uma característica do cérebro. Pergunta - Mas o conhecimento atual do cérebro é provisório e, portanto, o conhecimento de um espírito inteiramente determinado pelo cérebro parece discutível. Searle - É verdade. Encontramo-nos sempre dentro de uma dada situação histórica. Na situação em que me encontro, o único funcionamento que pode servir-me como modelo de explicação é o dos neurônios e das sinapses. Mas teremos revoluções na neurobiologia. O modelo das sinapses e dos neurônios talvez seja substituído por um modelo que se concentre em elementos menores da anatomia do cérebro, mas é possível também que o modelo em questão abranja um sistema maior, que dê conta do conjunto das células. Estou muito interessado nessas questões. Mas quero ressaltar que se busca um modelo de explicação causal. O cérebro causa os estados da consciência. E isso mesmo se, atualmente, ainda estivermos muito longe de saber exatamente como o cérebro funciona. Pergunta - Esse novo conhecimento do espírito contribui para retirar o poder das descobertas da psicologia. Não se arrisca com isso eliminar a própria idéia de que um espírito possa encontrar-se "doente" e desenvolver o conhecimento de um homem abstrato, já que situado em condições sistematicamente "normais"? Searle - Acredito que não. Quanto mais aprendermos sobre o fundamento do cérebro, melhor será nossa capacidade de explicar as diferentes formas de patologia mental. A esquizofrenia é um bom exemplo: ela era tomada como um fenômeno puramente mental, mas sabemos agora que corresponde a uma disfunção neurobiológica. Todo o conhecimento freudiano do espírito está fadado a ser superado por um conhecimento mais profundo do funcionamento e das disfunções do cérebro. Dispomos hoje em dia de uma farmacologia relativamente rica que nos permite tratar de doenças como a neurastenia etc. Pergunta - Como o sr. vê a relação do filósofo com a vida social e política? Searle - Acredito que o filósofo é uma pessoa mais informada do que os outros cidadãos, mas, se observarmos a história da participação política dos filósofos, veremos que não se trata de uma história feita apenas de alegrias. Houve certamente episódios positivos, como a luta contra a guerra do Vietnã nas universidades americanas. Como indivíduos educados, os intelectuais têm a obrigação de informar as pessoas. É portanto uma das tarefas do intelectual agir como crítico social, como informador das realidades que não são necessariamente visíveis na superfície das coisas. Existe uma responsabilidade intelectual, mas é somente a responsabilidade de um cidadão beneficiado por uma instrução superior à média. Pergunta - O sr. termina seu livro "Do Cérebro Ao Saber" com uma evocação do livre-arbítrio. É um tema que parece introduzir a noção da subjetividade, mas depois disso o sr. não voltou a tocar no assunto. Searle - De fato, mas deverei retomar esse conceito no livro que estou escrevendo sobre a racionalidade. Parece-me necessário que nosso conceito de racionalidade inclua o de liberdade. Sem a noção de liberdade, é impossível que nos compreendamos como seres racionais. De outro modo, a racionalidade não seria capaz de estabelecer diferenças. A diferença supõe a liberdade de escolha. A adequação da racionalidade e do livre-arbítrio é uma questão difícil, mas indispensável para superar a visão mecanicista do espírito, que predomina até hoje na filosofia analítica. Tradução de José Marcos Macedo. Livros no Brasil: "A Redescoberta da Mente" (Ed. Martins Fontes) "Expressão e Significado" (Ed. Martins Fontes) "Intencionalidade" (Ed. Martins Fontes) Texto Anterior: Uma modernidade ainda inabordável? Próximo Texto: Os signos divinos Índice |
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