São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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A interpretação dos sonhos

Às vezes, é melhor pôr de lado o argumento lógico

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Joana não fez esse percurso pendular. A cor negra sem vacilações, os dentes muito brancos revelam sua origem. Não atravessou ondulações, não alimentou maiores expectativas e foi melhorando de vida pouco a pouco, sem sair da pobreza, com os pés bem plantados no chão e a mente clara como uma bússola em meio às dificuldades: ela bem sabe que "a vida apronta".
Os dois se entendem bem e são capazes de desenrolar uma infinita conversa sobre variados assuntos, a ponto de deixar que a cozinha se transforme em sauna, com o vapor saindo por tempo maior do que o necessário pelas frestas da chaleira meio capenga.
Enquanto eu procurava um pacote de aveia, peguei, em vez de um diálogo, uma narrativa em andamento do Arlindo:
"O leão estava lá em baixo, no fundo do poço, com aquela cabeleira de leão. Nem fiquei com medo, olhando de cima, com muita distância. Mas bem que eu devia ter reparado que alguma coisa ia acontecer porque tinha muita coisa esquisita.
O leão parecia me olhar de atravessado, mesmo de tão longe, e o poço era estranho. Em vez de ser feito de tijolo, era forrado de mármore, um mármore branco, com uns risquinhos escuros. De repente, o leão trepou pela parede de mármore, usando os risquinhos como se fossem os degraus de uma escada, e ficou na minha frente. Eu me encolhi, mas ele não me atacou, parecia até que dava risada. Senti o bafo do bicho e, de repente, a pata que batia macio no meu ombro sem parar, como quem dá um aviso".
"Não tem nem o que discutir", ponderou a Joana, "é leão na cabeça". E os dois começaram a escrever números de um papelucho, armando combinações que chamavam misteriosamente de "duques", com certeza não por reverência às instituições monárquicas. Tão logo chegaram a um acordo, o Arlindo se foi "para fazer a fé", dizendo para mim ou para quem quisesse ouvir que ia lá na esquina e voltava já. Saiu com um raro ar de confiança, seguro de que, daquela vez, não tinha erro.
Desde os tempos de meu avô, sei que o desfecho se dá por volta das três da tarde. A essa hora, em busca do pacote de aveia jamais encontrado, lá estava eu à espreita. O Arlindo nem percebeu minha presença ou não lhe deu importância: ligou o telefone, anotou alguma coisa no papelucho e voltou-se para a Joana com uma cara a um tempo triste e resignada. Resumiu tudo em uma palavra: "Dançamos".
Joana fez cara de espanto. Eu quis intervir, dizendo que, estatisticamente, acontecera o previsível e não havia nada de estranho no resultado. Desisti, antes que o pensamento se transformasse em palavra, porque o argumento lógico e afinal de contas sem graça foi implicitamente derrubado pela voz inconformada da Joana: "Não dá pra acreditar. Onde foi que nós erramos? Me conta o sonho de novo". Embora usasse o pronome no plural, creio que o usava em sentido majestático, pois tinha um ar de quem recebeu competência específica para interpretar sonhos ainda que, como se vê, admita cometer erros.
Arlindo teve de repetir a visão leonina, a visão do poço de paredes marmóreas com seus veiozinhos negros, a presença súbita da fera e, por fim, a sensação de susto, amenizada pela pata que se limitava a tocar em seu ombro. Estava quase no final quando Joana interrompeu a descrição onírica: "Espera aí, me repete o pedaço da pata, como é que o leão fazia?".
Não tenho como reproduzir em palavras o gesto expressivo do Arlindo. Tento dar uma idéia remota, dizendo que ele moveu o braço flexionando em ondas as articulações. O rosto da Joana se desanuviou e nele se abriu um sorriso malicioso: "Fomos pela aparência, estava tudo claro demais e não prestamos atenção no aviso. Pense na patinha do leão, jogamos a sorte fora". Diante da impassibilidade do Arlindo, arrematou: "A patinha, homem, você acha que aquilo era pata de leão? Repare bem, não vê que deu veado na cabeça?".
Quis elogiar a Joana por sua capacidade de distinguir entre o conteúdo manifesto e o latente de um sonho. E quis até sugerir que o Arlindo tivera um desejo homossexual realizado por meio do afago da meiga fera. Felizmente, não levei adiante a intenção. Pelo que sei, Joana não é freudiana, não acredita que os sonhos sejam a realização de algum desejo. Para ela, se bem percebi, eles são mensagens provenientes de regiões ignotas, fora de nossos corpos e de nossas mentes, premonição de sorte, de azar ou de desgraças.
Quanto ao Arlindo, mesmo sem entender as distinções eruditas, entenderia o suficiente para se sentir atingido em um de seus atributos mais prezados, ou seja sua masculinidade. Seria inútil até mesmo parafrasear a letra de um samba e sugerir-lhe que "o inconsciente tem razões que a própria razão desconhece".
Desisti mais uma vez de intervir e renunciei também a um impulso, apenas esboçado, de meditar sobre a diversidade dos códigos culturais. Afinal de contas, um prato de aveia estava desde cedo à minha espera.

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