São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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As afinidades eletivas de Mário e Manuel

MARCOS ANTONIO DE MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Manuel Bandeira, em carta de maio de 1924 a Mário de Andrade, conceitua "amizade" como "afinidade de inteligências, relação de inteligência". A definição dimensiona o espectro do diálogo epistolar que Bandeira sustentou, entre 1922 e 1944, com o companheiro modernista. As 277 cartas, bilhetes e telegramas do autor a Mário, assim como toda a correspondência passiva deste, permaneceram lacradas durante 50 anos. Essa foi a disposição testamentária do autor de "Macunaíma".
A tônica das cartas, colocada no âmbito da "inteligência", favoreceu embates e tensões cujas arestas só puderam ser aparadas no terreno da admiração mútua. Nesse diálogo a expressão epistolar de Mário não integra as fórmulas socráticas revestidas do humilde saber, capaz de seduzir intelectualmente os moços de várias gerações que a ele acorriam. No lugar da retórica de enredamento ganha relevo a erudição camarada e a consciência da limitação.
Os interlocutores dessa correspondência avistaram-se pela primeira vez em 1921, no Rio, na casa do poeta Ronald de Carvalho, quando Mário declamou poemas de "Paulicéia Desvairada". Tencionava arregimentar adeptos modernistas entre os cariocas e "exigiu" a presença de Bandeira, cujos versos de "Carnaval" (1919) Guilherme de Almeida lhe tinha lido em "uma nunca esquecida tarde de domingo", numa viagem de táxi. Mário queria conhecê-lo "fisicamente", não por "curiosidade", mas "para um reconhecimento", escreveria em 1923. A troca de cartas começa por iniciativa de Bandeira, em maio de 1922, depois da Semana de Arte Moderna, quando oferece ao novo amigo um exemplar de "Carnaval".
Não obstante aquele único encontro em 1921, Mário desvela, já em 1923, a amizade enraizada no limite da carta, ao considerar Bandeira um de seus melhores amigos, "um homem junto do qual eu sou eu, ser aberto que se abandona". A afirmação da identidade, o confronto entre personalidades maduras e a confiança fraternal mediada pela distância levam Mário a confessar, como Goethe: "Creio nas afinidades eletivas".
Manuel, então, procura, ele também, entender o lastro desse relacionamento que se fortificava, pleno de possibilidades intelectuais, vincado pela camaradagem: "A tua carta desvaneceu-me grandemente pela amizade e confiança com que nela te abriste. Acredito também nas afinidades que nos relacionam e tenho para mim que são sobretudo de ordem moral". Contudo essa afinação pactuada em 1923 derivou estranhamente de desconcertos perigosos. O diálogo epistolar no início periclitou por conta de rudezas interpretativas e sinceridades ásperas.
Para Mário, "Debussy", poema de Bandeira, lembrava, na realidade, os torneios melódicos de Satie do "Minuete, da Aubade, dos Morceaux en forme de poire". O autor se ressente da incompreensão, dando de ombros -"Tristeza! Incomunicabilidade dolorosíssima das almas!"- e desencavando contra-argumentos que justificassem inspiração, o arte-fazer poético e a sugestão musical. Bandeira se rende à existência autônoma do outro e à impossibilidade de domar o sentido, ao superar o lamento inicial: "Ainda bem! Sinal que não somos banais".
Em contrapartida, por ocasião do aparecimento de "Paulicéia Desvairada", Bandeira enfileira pontos fracos do livro, que parecia ter perdido muito sem a leitura dramática apaixonada de Mário. Com franqueza, repudia os "desvairismos gongóricos", "resíduos passadistas", certos "neologismos", bem como rimas e ecos internos de alguns poemas. Quem assim sentencia, citando trechos e circunstanciando o alvitre, é o poeta formado na tradição simbolista-penumbrista, o abridor de picadas modernista, o sagaz conhecedor do ofício poético.
Mário reconhece as bases sólidas das opiniões expressas na carta e dá o braço a torcer, pois tinha encontrado o par intelectual perfeito: "Para mim a melhor homenagem que se pode fazer a um artista é discutir-lhe as realizações, procurar penetrar nelas, e dizer francamente o que se pensa".
O projeto de leitura crítica aí esboçado insinua-se vigorosamente em grande parte do diálogo epistolar Mário-Bandeira. O espaço da carta conjuga aspectos da expressão testemunhal ao fértil "laboratório" da criação ali sediado. Nesse laboratório, é possível acompanhar-se o engendramento do texto literário em filigramas (elementos de constituição técnica da poesia e seus problemas específicos), observar os meandros da análise (gênese e busca do sentido) e até pontuar motivações externas que irão "precisar a circunstância" do texto. A colaboração justifica-se no diálogo como trabalho compartilhado, em que a criação se sujeita a modificações, de acordo com a leitura e impressões do outro, tornado o alter ego da criação.
Ambos crescem, mesurando-se em uma opinião liberta: "Aqui vão de volta os teus poemas", escreve Bandeira em outubro de 1924. "Li-os, reli-os e, como fiz de outras vezes, cortei, emendei, ajuntei, pintei o sete! Tudo, porém, a lápis e levíssimo, de sorte que facilmente se apagam! Fiz como se os versos fossem feitos só pra mim e muitas vezes mesmo por mim. Sou o teu maior admirador, mas a minha admiração é rabugenta e resmungona". O trecho da carta oferece a amplitude da cooperação literária nessa correspondência, na medida em que desvenda uma atitude respeitosa, mas imperativa diante do interlocutor.
A intervenção crítica de Bandeira, por ele próprio denominada "metafísicas do estilo", ou seja, leitura escorada em preceitos (preconceitos) literários, solapa a força decisória. Mário frequentemente modifica/suprime versos, reelabora a ficção e a ensaística. Em 1925, por exemplo, confidencia ao amigo: "Quando você me faz qualquer reparo, geralmente aceito (e até uns tempos andei aceitando com docilidade por demais) e quando não aceito modifico, parafuso, repenso, trabalho e sempre fico numa dúvida baita. Isso prova que sei que você me aprecia porque me aprecia mesmo, com inteligência, com crítica, com independência de coração".
Assim acontece com o capítulo "Ci, Mãe do Mato", de "Macunaíma", considerado "descosido" por Bandeira e reescrito na versão publicada. Da mesma forma, o poema "Vitória-régia", condenado pelo severo leitor, se transmutaria depois em crônica. Bandeira pela vez dele se mostra mais renitente em aceitar os alvitres de Mário, mas não se nega às evidências trocando um "para o pé", lido pelo amigo como o cacófato "paraopeba", por "ficar ao pé", expressão tornada definitiva em "O Anjo da Guarda". O impasse também se estabelece ao longo desse diálogo.
A situação mais exemplar envolve a "Carta pras Icamiabas", capítulo de "Macunaíma" que abusa da retórica epistolar, detestado por Bandeira. Mas, a "pièce de résistance", logo se vê, envolve a questão da linguagem, nó cego da correspondência. Ao leitor extemporâneo intriga ainda a excelência que Bandeira atribui aos poemas de Mário "São Pedro" (hoje sepultado nas páginas de "Klaxon") e ao abortado "Cenas de Crianças". Da mesma forma, instiga o silêncio de Mário frente ao primoroso poema "Profundamente", enviado em carta de 1927.
Se esses escritores, no perímetro da escrita epistolográfica, se mostram tão disertos em literatura (tanto quanto em música, artes plásticas e nas fervilhantes miudezas do cotidiano), frente a frente pareciam guardar certas reservas. Bandeira dá o alarme, em 1925, acusando a fratura da personalidade de Mário: "Há uma diferença grande entre o você da vida e o você das cartas. Parece que os dois vocês estão trocados: o das cartas é que é o da vida, e o da vida é o que é o das cartas. Nas cartas você se abre, pede explicação, esculhamba, diz merda e vá se foder; quando está com a gente é... paulista. Frieza bruma latinidade em maior proporção pudores de exceção". Bandeira, com o despojamento que o caracteriza nessas cartas, tocava no ponto mais espinhoso da epistolografia mariodeandradiana, ou seja, o caráter de encenação de que se reveste essa escrita.

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