São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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A revolução americana

LUIZ EDUARDO SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há muitas maneiras de introduzir os leitores brasileiros à obra de Richard Rorty (cujos "Estudos Filosóficos" está sendo lançado no Brasil), e à importância de sua contribuição original à filosofia ou, mais amplamente, ao pensamento contemporâneo. Adoto aqui a forma talvez mais simples e sintética: a descrição de sua trajetória e de suas principais invenções (ele jamais diria "descobertas").
Rorty se consagrou na comunidade acadêmica transnacional no final dos anos 70, quando publicou "A Filosofia e o Espelho da Natureza" (Ed. Relume Dumará). Antes, era apenas mais um eminente professor de filosofia, conhecido somente por seus pares, no ambiente rotineiro e fechado da filosofia norte-americana, dominado pela filosofia analítica. Ambiente fechado, porque inteiramente desinteressado na história da filosofia, indiferente aos autores contemporâneos não-analíticos, e, sobretudo, ignorante da filosofia continental européia. Fechado também porque avesso ao mundo público e à vida política, e refratário ao diálogo interdisciplinar, no campo das humanidades. A filosofia analítica se pensava como uma extensão e, idealmente, uma condição para o progresso das ciências da natureza, da lógica e da matemática. A despeito das obras de Quine, Sellars e Davidson, provocadoras e críticas da tradição positivista, o universo da filosofia analítica ainda trazia as marcas corporativas, auto-referidas, de sua vocação isolacionista.
A autoconsciência filosófica norte-americana típica pensava sua própria história como o resultado de uma ruptura radical com o passado pré-científico ou pré-analítico. John Dewey, que reinara absoluto entre os intelectuais e inspirara tão profundamente a opinião pública até sua morte, no início dos anos 50, seria reduzido, no discurso corrente nos departamentos de filosofia norte-americanos, à última expressão de uma filosofia discursiva perempta, que deixara de merecer qualquer atenção.
Nesse contexto, a obra de Rorty, desde fins dos 70, caiu como uma bomba, deslocando composições e alinhamentos micropolíticos tradicionais, invertendo perspectivas, produzindo novas alianças insuspeitadas, costurando famílias filosóficas improváveis com os fios de uma imaginação poderosa. Sobretudo, a bomba rompeu barreiras disciplinares, transgrediu Tordesilhas acadêmicas, desmontou resistências atávicas geradas nas dinâmicas rotineiras da reprodução de poderes institucionais, desestabilizou recursos acadêmicos de auto-consagração e lançou os filósofos na arena pública, devolveu os pensadores à vida cívica da cidade política. A torre de marfim foi assaltada pela potência crítica, irônica e inventiva do neopragmatismo de Richard Rorty.
O alvo a que se dirige a crítica de Rorty são as filosofias da representação, fundacionalistas ou essencialistas, que pensam o conhecimento como correspondência à realidade e restauram, sucessivamente, ao longo dos séculos, a metafísica dos dualismos (universalismo-relativismo; objetivismo-subjetivismo; racionalismo-irracionalismo etc.).
Rorty dirá que o conhecimento não serve aos seus propósitos práticos porque é verdadeiro, mas que, ao contrário, dele dizemos ser verdadeiro porque serve aos nossos objetivos, funciona no contexto de metas e práticas em que o adotamos e o fazemos operar. Dirá ainda, reiterando teses de várias outros pensadores, que não há um ponto de Arquimedes, superior e exterior ao diálogo humano, a partir do qual pudéssemos deduzir os critérios indiscutíveis e finais da verdade, da justiça e da beleza. A verdade, como os juízos éticos e estéticos, são produtos precários e provisórios dos debates e embates tensos, agonísticos e incessantes, de atores históricos concretos, em contextos sociais determinados.
Devolver ao sublunar, à contingência de deliberações mundanas, os temas sacrossantos de nossa tradição metafísica não implica concluir que vale tudo, que não há critérios ou que estamos, então, condenados ao império da anarquia irracional. Significa apenas que não nos iludiremos mais com dogmatismos e saberemos respeitar nossa finitude e a dimensão inapelavelmente política e histórica de nossos juízos. Significa que tenderemos a prezar a humildade intelectual tolerante e generosa, aberta à experimentação e à criatividade, e que teremos de minar nossa arrogância proverbial com o veneno produtivo e humanizante da auto-ironia.
Ao elaborar seu discurso crítico, Rorty reinventa uma tradição, o pragmatismo, cujos pais fundadores foram William James, Charles S. Pierce e John Dewey. A família que resulta da nova descrição da história da filosofia proposta por Rorty incluirá autores provenientes de tradições diversas, como Sellars, Davidson, por um lado, Nietzsche, Heidegger e Wittgenstein, por outro. Quine, John Stuart Mill, Foucault e Derrida.
As novas alianças correspondem a cruzamentos surpreendentes e produzem uma geopolítica filosófica original, que reestabelece laços entre o presente e o passado, derrubando o muro de silêncio erguido pela filosofia analítica, em seu gesto autofundante radical. Finalmente, Rorty, redescrevendo a história da filosofia pela chave da crítica aos fundacionalismos, pondo em diálogo William James e John Dewey com Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Foucault e Derrida, termina articulando histórias filosóficas locais, de um modo cosmopolita. Na configuração final de sua versão da história recente da filosofia, Rorty logra inscrever o pensamento filosófico norte-americano na história da filosofia ocidental, superando o isolamento provocado por preconceitos mútuos, resistências políticas e pelas dificuldades de comunicação entre distintas culturas, linguagens e vocabulários.
A segunda manobra notável de Rorty foi sua combinação entre o radicalismo filosófico antimetafísico e a tradição liberal-democrática do pensamento político. Antes de Rorty, se um autor adotasse uma perspectiva filosófica antifundacionalista, antiessencialista, quase que naturalmente ela ou ele tenderia a comprometer-se com um ideário político antiliberal e antidemocrático -à esquerda, como os franceses Deleuze e Foucault, ou à direita, como o alemão Heidegger. Rorty se descreve como um liberal de esquerda, identificado com a social-democracia.
A última polêmica em que Rorty vem se envolvendo diz respeito à valorização da tradição democrática norte-americana. A polêmica vai se radicalizar quando for publicado, no final do ano, o próximo livro de Rorty ("Achieving our Country: Leftist Politics in Twentieth Century America").
Nessa obra, Rorty procura retomar o fio da meada da esquerda democrática norte-americana, propondo a união democrática dos subalternos, oprimidos, com as classes médias e setores abertos e progressistas das elites, em torno de um projeto generoso e inclusivo de sociedade. Volta a criticar a miopia política das minorias que supervalorizam identidades e, mais controverso ainda, critica a postura antiamericana dos intelectuais de esquerda, que é predominante desde a Guerra do Vietnã. Rorty afirma, a meu ver com inteira razão e com sabedoria política, que as esquerdas têm jogado fora a criança com a água do banho. Ao invés de criticarem o imperialismo e as injustiças internas, em nome das tradições democráticas norte-americanas e dos valores positivos, experimentais, abertos, tolerantes, includentes, de sua sociedade, entregam as melhores tradições, os melhores valores e as virtudes norte-americanas aos conservadores.
Ao fazê-lo, afastam-se inapelavelmente das camadas médias, que são patrióticas e se orgulham dos méritos de sua sociedade. Por enquanto, é uma voz isolada ou, pelo menos, amplamente minoritária nas esquerdas. Não faltarão críticas duras. De meu ponto de vista, Rorty interpreta unilateralmente e de forma reducionista a questão da política de identidades, que é muito mais complexa do que ele reconhece. Por outro lado, parece-me corretíssimo em sua revalorização das tradições democráticas norte-americanas e das virtudes de sua sociedade. De algum modo, suas polêmicas também são nossas.

A obra: "Ensaios Filosóficos", de Richard Rorty, em dois volumes, será lançado neste mês pela Editora Relume Dumará. Preço não definido.

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