São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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A habilidade natural

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A edição em português dos "Escritos Filosóficos" de Richard Rorty é uma boa notícia para o leitor brasileiro. Rorty é um dos mais brilhantes filósofos americanos da atualidade. No terreno da subjetividade, seu trabalho abre horizontes extremamente interessantes. Embora sem tratar diretamente do assunto, as críticas que fez à doutrinas da filosofia analítica sobre a mente podem estender-se a inúmeras teorias psicológicas e a muitas tópicos da teoria psicanalítica.
Em linhas gerais, Rorty renova o interesse pelo pragmatismo de James e Dewey, sublinhando a concepção darwinista do sujeito e da linguagem. A evolução, diz ele, produziu criaturas falantes que utilizam marcas e sons articulados para receber discriminadamente estímulos ambientais e responder discriminadamente a estes estímulos. O sujeito é um dos efeitos desta habilidade natural que chamamos de linguagem. As consequências deste pressuposto são inúmeras.
Em primeiro lugar, o conhecimento deixa de ser imaginado como uma atividade representacional e a linguagem como um existente à parte, entre o cérebro e o resto da natureza. Entre o pensador e o que ele pensa não precisamos mais interpor um terceiro termo -mente, razão, linguagem, consciência ou qualquer outra entidade do mesmo tipo lógico- para explicar por que podemos representar falsa ou verdadeiramente "o que são as coisas em si".
Em vez de uma teoria "representacional", Rorty, apoiando-se fundamentalmente em Sellars, Quine e Davidson, propõe uma "teoria causal" do conhecimento. Conhecer não é "representar" alguma coisa para algo, pessoa ou função cognitiva. Conhecer é lidar com informações ambientais que afetam os organismos. Lidar significa alterar o estado de equilíbrio anterior à afetação, tendo ou não por finalidade a "adaptação", que é apenas um produto secundário da mutação ocasional do patrimônio genético ou da reação experimental do organismo vivo à exigências do meio. O conhecimento, portanto, é "causado" por esta constante interação organismo/meio, e o sujeito, um dos efeitos linguageiros desta interação.
Em segundo lugar, abandonando o "representacionalismo", abandona-se a pretensão de descrever a intrinsicalidade dos objetos investigados. As coisas, estados de coisas ou eventos são sempre percebidos e interpretados por comparação com outras coisas, estados de coisas e eventos.
Em vez de procurar saber "o que é intrínseco ou extrínseco" a tal fenômeno, pergunta-se qual o pano de fundo de crenças ou qual a rede de relações que tornou o fenômeno estudado um fenômeno relevante para a cultura do investigador. Ou seja, como Wittgenstein, Rorty não pergunta "o que torna algo idêntico a si mesmo em todas as circunstâncias lógica ou empiricamente possíveis", mas "que práticas linguísticas fazem-nos aceitar a identidade semântica do que consideramos um mesmo termo ou uma mesma coisa". Ou, pelo contrário, o que faz com que venhamos a notar diferenças e não semelhanças entre os objetos percebidos ou analisados.
Não existe algo que seja "a identidade" em abstrato e que nos faça "descobrir" a intrinsicalidade invariável do que definimos como idêntico a si mesmo, independente de contexto. Todo conhecimento do que julgamos saliente e importante conhecer é contextual e relacional. O sentido dos termos está no uso que fazemos deles, em contextos socioculturais.
Em terceiro lugar, descolando o sentido de termos, frases ou teorias de referentes fixos, ao modo do representacionalismo, o sujeito pensante ou intérprete dos fatos está liberado de compromissos com ontologias realistas ou universalistas. Sua tarefa não é mais a de conhecer cumulativamente ou aos saltos epistemológicos ou paradigmáticos a "realidade última" das evidências, mas a de imaginar que "background" de crenças permitiu assinalar tais referentes a tais palavras e, em seguida, afirmar que certas descrições "correspondem, refletem ou se adequam verdadeiramente" a tais ou quais pedaços linguísticos ou não-linguísticos do mundo.
Nem fisicalismo reducionista nem behaviorismo, a melhor definição para a hipótese rortyana da natureza do conhecimento e do agente que conhece é o "naturalismo pragmático", como sugere Bjorn Ramberg. Extrapolada para o domínio da subjetividade, esta tese implica a afirmação de que o sujeito não só é passível como exige várias descrições, todas elas logicamente válidas. A escolha de uma ou outra depende dos propósitos práticos que, em última instância, diz Rorty, são sempre ética ou moralmente normativos.
Podemos oferecer descrições do sujeito no vocabulário do mental, como podemos descrevê-lo fisicalisticamente. Mas estamos sempre optando por uma imagem moral prévia, enraizada nos hábitos linguísticos ordinários que orientam os propósitos do inquérito. Descrever o sujeito como "pessoa moral livre e autônoma", ou como um organismo biológico passível de controle experimental e interpretável em termos de leis nomológicas, é questão de estratégia intencionalmente dirigida para a afirmação de certas premissas éticas. Transcrito no idioma da psicologia leiga, o impacto é enorme. Muitos constituintes da subjetividade que aprendemos como "naturais, universais e imutáveis", perdem o caráter a-histórico.
A partir da leitura neopragmática, sentimentos, sensações, imagens ou outras figurações do que chamamos "natureza humana" mostram a dependência de crenças contextual ou historicamente construídas. Amor, paixão, sexo, fragilidade, potência, egoísmo, bondade, honra, glória, ganância, e assim por diante, são todos termos cuja história ou genealogia pode ser redescrita ou retraçada, em virtude de aspirações, necessidades ou sonhos presentes.
As chamadas "intuições indubitáveis" sobre "o que somos" nascem da participação numa cultura, num jogo de linguagem ou forma de vida que nos impõe, pela variação imprevista de experimentos morais e pela seleção retentiva de alguns destes experimentos, um modo contingente de lidar ou estar no mundo responsável pelas crenças que nos modelam.
A filosofia de Rorty, na clave da reflexão moral e não necessariamente no conteúdo de suas opiniões políticas, apresenta-se como um agir filosófico próximo da preocupação com as asceses individuais ou com a estilização de modos de viver tematizadas por Pierre Hadot, Peter Brown, Michel Vocault e outros. Na aproximação com a psicanálise, o naturalismo pragmático, desfazendo fronteiras tradicionais entre natureza/cultura, sujeito/objeto, aparência/realidade etc., evoca os momentos mais fortes do pensamento de Freud, Ferenczi, Balint, Bowlby e mais especificamente Winnicott, como mostraram Adam Philips e Alexander Newman.
Por outro lado, a ênfase dada por Rorty à performatividade da linguagem na constituição do sujeito -em particular, à função da metáfora não-significativa como produtora a posteriori de sentido- e à idéia de causalidade não-linguística dos atos de fala e do imaginário subjetivo parece confirmar algumas das mais criativas invenções teóricas de Lacan.
Em resumo, como notou Bento Prado Jr., com elegância, economia e grande inteligência, o maior valor do Rorty é o de mostrar a reinvenção de uma tradição em estilo próprio. Sem criacionismos fáceis ou fórmulas encantatórias, ele mostra que é possível pensar em liberdade, comprometido com o que é humanamente útil. Rorty não é um modelo a imitar. É um exemplo de honestidade, decência, coerência e grandeza intelectuais que vale a pena conhecer e avaliar, sem fraude nem favor.

E-mail jfreirecosta@ax.ibase.org.br

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