São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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Crianças imperativas

ALINE SORDILI; ALESSANDRA BLANCO

Meninos da nova geração, inteligentes e voluntariosos acabam confundidos com hiperativos
POR ALINE SORDILI e ALESSANDRA BLANCO
"Minha filha vai ter dois presentes de dia das crianças: um ela já ganhou, uma agenda eletrônica: hoje vai ganhar uma boneca. É isso que que quero para a sua educação, prepará-la para ser uma mulher moderna no ano 2010 e manter enquanto posso seu lado infantil, com brinquedos da minha época."
(Dudu Pacheco, mãe de Rachel, 7)
"Os meninos enlouquecem a mãe, não ficam parados, pulam de sofá em sofá. Se penduram nas cortinas e jogam futebol dentro da sala. Às vezes a gente acaba perdendo a cabeça e dá uns tapinhas. Mas na escola, as professoras dizem que eles são uns anjos."
(Ivo Antonio Areia Jr., 32, pai de Lucas, 3 e Felipe, 6)
"Mudei minhas filhas de colégio porque, no método conservador, elas não estavam desenvolvendo muito. Agora, estudam em um colégio construtivista, que reúne o perfil que eu quero para o seu futuro: mexem no computador, usam internet, estão se adaptando à globalização."
(Tânia Regina, 39, mãe de Renata, 9 e Laura,7)
"Meus filhos têm fama de levados no colégio. No boletim do caçula, vem escrito que ele só faz o que quer. Em casa, como são em quatro irmãos, tenho de impor um regime militar ou enlouqueço, mas nem sempre funciona. Quando saio, eles fazem tudo que não pode. Às vezes dou uns tapas, mas não adianta brigar."
(Andréa Aliperti de Mello Correa, 34, mãe de Fernanda, 8, Camila, 7, Omar, 5 e Thiago, 4)
"Meu filho sempre foi ousado, queria chamar a atenção. É bom aluno, faz pesquisa, mas nunca acata os professores. Sou separada, mas não acho que isto interfira. É personalidade."
(Elisabete de Oliveira, 38, mãe de José Antônio, 8)
"Eu digo não, não, não. Só falo não, não. Eu digo nããão." A música do "não", adaptação de "Fama de mau" (Erasmo Carlos), foi a forma que a terapeuta corporal Cristina Telles, 32, encontrou para fazer com que seus filhos Augusto, 5, e Júlia, 3, obedecessem.
"A 'idade do não' é muito difícil. É preciso ter jeito para convencê-los a tomar banho, escovar os dentes e fazer lição-de-casa. Hoje, quando começo a cantar, eles entram na brincadeira e vão fazer os deveres", conta.
A disposição musical de Cristina mostra que as mães hoje têm de ser muito criativas para "manter os filhos na linha" -se quiserem aposentar as surras. Conseguir impor limites parece estar cada vez mais difícil.
As crianças de hoje se desenvolvem rapidamente. Pelas mais variadas formas (TV e Internet, principalmente), têm acesso a todo tipo de informação, assimilam conhecimentos mais facilmente e acabam tornando-se "imperativas": ditam suas próprias regras e tendem a não aceitar ordens de pais e professores.
A dificuldade em lidar com crianças voluntariosas está levando muitos pais a trocarem pedagogos por médicos. Crianças muito agitadas acabam rotuladas como "hiperativas" -nos EUA, há cerca de 3 milhões enquadradas nessa categoria (leia texto à pág. 14).
Os médicos explicam que existem três tipos de hiperatividade: a normal, que acontece durante o desenvolvimento da criança; a secundária, decorrente de algum fator externo (divórcio dos pais, por exemplo), e a primária, que é genética e a única que exige tratamento.
Má-criação e doença se confundem porque uma criança normal, mas educada sem limites, pode apresentar características muito parecidas com as dos hiperativos, como agitação e rebeldia. Só que neste caso, o único tratamento é paciência e psicologia.
A assistente de diretoria Elisabete de Oliveira, 38, enfrentou essa dúvida. Seu filho único, José Antônio, 8, não senta para escrever na escola, nem para almoçar em casa. Come de pé. Adora pular de sofá em sofá e dar cambalhotas pelas camas. É também louco por bichos: cria um esquilo, um hamster e uma tartaruga e leva insetos para soltar na sala de aula.
Na natação, é o primeiro a pular na água -já bateu o queixo na borda da piscina. Quando vai com a mãe ao supermercado, foge do carrinho e se esconde atrás das caixas registradoras até provocar pânico geral.
"Levei-o a uma terapeuta porque as mães dos seus coleguinhas insistiam que ele era muito agitado. Mas a psicóloga disse que meu filho é normal. Ela me aconselhou a fazer análise para aprender a lidar com ele", conta Elisabete, que está fazendo terapia.
Quando fica irritada com José Antônio, Elisabete "sai para dar uma volta até se acalmar". Ao mesmo tempo, orgulha-se dos desenhos do filho. "Ele cria novas histórias em quadrinhos para os desenhos que vê na TV."
A dona-de-casa Andréa Aliperti de Mello Correa, 34, também sofre com a agitação dos filhos, especialmente do caçula. Mãe de quatro -Fernanda, 8, Camila, 7, Omar, 5, e Thiago, 4- e grávida de seis meses, ela conta que o menor é o "pestinha".
Uma vez, Thiago escondeu-se atrás dos brinquedos na escola e só apareceu quando viu a professora chorando e tomando água com açúcar -a essa altura, o colégio todo, inclusive a diretora, procurava pelo menino.
Em casa, ele só tem liberdade para "bagunçar" no quarto de brinquedos. Mas, quando sua mãe sai, joga carrinhos e bonecos na piscina, na privada ou nos ralos para entupir.
A situação piora quando há troca de babás. "Aí, é um caos. Se eles resolvem que não gostaram da moça, aterrorizam", conta Andréa. Uma delas, abandonou o emprego chorando e não voltou nem para pegar o último salário. "Quando cheguei em casa, os quatro tinham tirado todas as peças do guarda-roupa, feito uma montanha e estavam brincando de guerra de roupas. A babá estava sentada ao lado da pilha, chorando, porque não conseguia controlá-los", conta.
No aprendizado, nem José Antonio, nem Thiago têm problemas. Como em praticamente tudo, dedicam atenção apenas ao que lhes interessa. José Antonio gosta de desenhos e de ler sobre bichos: quer ser biólogo ou zootécnico. Thiago fica quieto para ouvir histórias, ainda não sabe "o que quer ser quando crescer", mas também gosta de tudo o que se relaciona a bichos.
"Não faço porque não quero" é a resposta de Rachel Pacheco Vasconcellos, 7, aos pedidos da mãe, a assessora de imprensa Dudu Pacheco, para arrumar o quarto, fazer lição de casa e até comer.
Rachel fala como uma adulta, é louca por computadores e tem até um jornal, feito em parceria com dois amigos.
Em vez da lição-de-casa, prefere assistir TV e se justifica: "Posso aprender português nas propagandas do McDonald's". Depois da entrevista, deixou um recado no celular da mãe: "Aqui é a Aline, da Folha. Adorei sua filha. Ela é muito inteligente, bonita e esperta".
Dudu admite não saber lidar com a "teimosia" da filha. "Como trabalho o dia todo, procuro compensá-la de alguma forma, deixando-a viajar com amigas e dando presentes."
Para o pediatra Bernardo Ejzenberg, 46, o comportamento dos pais é uma das causas da "geração imperativa". "Por terem de deixar as crianças em casa sozinhas ou muito tempo na escola, os pais estão muito condescendentes. É a lei da compensação", diz Ejzenberg.
Para a psiquiatra Maria Teresa Lamberte, 37, do Hospital das Clínicas, os pais têm de ser firmes. "Um 'não' deve ser explícito, sem ser agressivo, dúbio ou permissivo." Se insistir na teimosia, Maria Teresa recomenda não bater. "Dê um castigo, tire o que ele mais gosta, como a TV, por um tempo."
A comerciante Valéria Canzano Areia, 29, mãe de Lucas, 3, e Felipe, 6, não entende por que os meninos são calmos na escola e infernais em casa. "Eles têm personalidades muito fortes e desejo próprio. Batem o pé quando não querem fazer alguma coisa. Quando saio do sério, dou umas palmadas", diz.
Seu marido, o comerciante Ivo Antonio Areia Jr., 32, conta que é comum chegar em casa e ver os meninos: 1. pendurados na cortina da sala; 2. rabiscando as paredes do quarto com canetinha; 3. em cima das bicicletinhas tentando abrir as janelas do apartamento, o que já foi proibidíssimo pelos pais.
"Comigo é só brincadeira, porque só os vejo à noite. A mãe é mais dura. A gente não pode, por exemplo, deixá-los sozinhos no banho por um minuto que eles 'afogam' o banheiro", diz Ivo.
A mudança de comportamento dos meninos, notada por Valéria, pode significar falta de regras claras em casa ou diferença de sintonia entre os ambientes -pai liberal, colégio conservador.
A psicóloga Tânia Regina Soares, 39, mudou suas filhas -Renata, 9, e Laura Cipolla, 7- de escola porque sentiu essa desarmonia. O antigo colégio seguia um método conservador e não estava dando resultados. O atual adota o construtivismo, e Tânia acredita que as meninas se desenvolvem melhor. "Esse colégio, coloca as meninas em contato com o futuro, é mais moderno, informatizado. Elas brincam no computador e chegam a produzir livros", conta.
Segundo Tânia, Renata não vai bem na escola. O motivo seria a sua separação. "Até hoje, a parte emocional dela encobre a intelectual." A menina fez ludoterapia -terapia por meio de brinquedos- por três anos. Renata gostou e explica por que: "Eu estava segurando muito. Foi bom porque desabafei".
Laura, 7, é desinibida. Lê gibis, assiste novela, se preocupa com moda. Conta que ficou chocada quando um garoto mandou um beijo na boca da amiga pela Internet. "Não dissemos nossas idades, mas ele foi muito abusado."
A psicoterapeuta Rosana de Fátima Tchirichian, 33, diz que não se pode buscar nos pais, no colégio ou na própria separação de um casal o motivo da superagitação em crianças. "Tudo isso tem alguma influência e a própria personalidade da criança também. Quando um pai percebe que seu filho é muito agitado, tem de parar para pensar e analisar quais são suas necessidades, as situações pelas quais está passando e encontrará uma razão. Muitas vezes, esse comportamento é para chamar a atenção para algo errado que está acontecendo."
A pedagoga Tizuko Kishimoto, 52, vice-diretora da Faculdade de Educação da USP, acha que os pais passam por uma fase em que se sentem "perdidos". Até a década de 60, se baseavam em uma educação tradicional. "Nos anos 70, foi introduzida a linha psicanalítica, mas os pais acabaram indo para o extremo oposto: o do liberalismo excessivo. Agora, não sabem o que fazer", diz.
Rosana acrescenta que, se a criança crescer com a idéia de que pode tudo, perderá suas referências e sofrerá muito no futuro, principalmente na adolescência, quando negará qualquer norma.
Elisabete acredita que esse não é o caso do seu filho, José Antônio. Mas já teme que a agitação da criança continue na adolescência. "Quando perco a paciência com ele e preciso dar um passeio para me acalmar, só peço para ter forças para aguentar firme a adolescência que está chegando."

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