São Paulo, domingo, 12 de outubro de 1997
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A pílula do bom-comportamento

MARINA MORAES

Aos seis anos, Skanda Kadimar, um nova-iorquino descendente de nobre família indiana, já era a "dor de cabeça" do motorista do ônibus escolar. O primeiro a escolher um banco, era sempre o último a colocar o cinto e, quando finalmente o fazia, prendia junto a mochila, a lancheira e os braços. Ficava então aquele alvoroço até que o pobre motorista conseguisse desamarrá-lo e passar o cinto corretamente pela cinturinha magra do moleque.
Os pais que acompanhavam as crianças até o ônibus toda manhã estavam acostumados à agitação excessiva de Skanda. Charmoso e inteligente, sabia de cor a história das guerras de seu país, o Sri Lanka, contra os portugueses e a contava cheia de detalhes sangrentos.
As outras crianças achavam graça nas brincadeiras do colega, que certa vez se enterrou de tal forma na neve que precisou ser "descongelado".
De repente, a ferinha murchou. O garoto começou a ficar tristonho, sempre calado, com uma expressão sem vida nos olhos. Acompanhava obediente o grupo, como se tivesse amadurecido dez anos em poucos dias. Na escola, Skanda, que vivia de castigo, virou "modelo de comportamento".
Uma dia, o pai contou que a mudança repentina do garoto se deu por causa de um remédio "fantástico", indicado para hiperativos. Outros colegas agitados na classe estavam tomando o mesmo medicamento e, em pouco tempo, "os índices de produtividade da turma tinham aumentado muito".
O Ritalin, da Ciba Geigy, virou o remédio da moda nas escolas. É um estimulante do sistema nervoso central, recomendado para portadores de ADHD (sigla em inglês para distúrbio de hiperatividade e déficit de atenção).
A ADHD já foi promovida a distúrbio psiquiátrico infantil "número um" nos EUA, com mais de 3 milhões de casos registrados. O difícil, dizem os especialistas, é determinar com precisão a diferença entre uma criança espontânea, cheia de energia e que se sente sobrecarregada pelos inúmeros detalhes da vida cotidiana e uma outra, portadora de uma deficiência neurológica.
Ainda na pré-escola, muitas crianças são declaradas "incontroláveis, desconcentradas, distraídas" e estão sendo medicadas com Ritalin: uma pilulazinha junto com a merenda. Na maioria dos casos, vem da própria escola a recomendação para que a mãe peça ao pediatra uma receita.
O Ritalin faz efeito entre meia e uma hora após ser ingerido, mas a duração é de apenas cerca de três horas. Em geral, as crianças tomam um comprimido pela manhã, ainda em casa, e uma segunda dose na hora do almoço, na escola.
Os efeitos colaterais, raros, incluem perda de apetite e insônia. Mas diversos testes mostraram que o remédio inibe a criatividade. Ao desenhar, por exemplo, crianças que costumavam usar todo o espaço do papel passaram a fazer desenhos pequenos, e as que usavam muitas cores optaram por uma ou duas.
O uso do remédio cresceu 600% nos últimos cinco anos nos EUA. A "bolinha do momento" não é privilégio dos mais ricos. Hoje é comum encontrar "crianças-zumbis", como estão sendo chamadas, nas escolas públicas do país.
Preocupados com a produtividade, os educadores americanos decidiram que o estado de letargia é mais eficiente que o de euforia. E que é mais fácil medicar meninos com dificuldade de concentração do que preparar melhor os professores para trabalhar com essas crianças.

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