São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 1997 |
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"Arturo Ui" avisa do fascínio de Hitler
NELSON DE SÁ
Reclama que se dá mais atenção à teoria do que ao teatro, às peças de Bertolt Brecht (1898-1956). Uma teoria que, no seu entender, foi feita para as montagens, para preparar aqueles atores dos anos 40 e 50 com quem o Brecht diretor lidava. Uma teoria que ele acha, simples e grosseiramente, chata. Causou espanto e contida revolta, por aqui. Mas foi subir ao palco que a revolta passou. "A Resistível Ascensão de Arturo Ui", de Brecht, que Martin Wuttke protagonizou nas duas únicas apresentações no Brasil, quinta e sexta, torna o dramaturgo alemão, outra vez, "nosso contemporâneo". Com não poucos cortes e tornada uma comédia por vezes histérica, "Arturo Ui" é, no adjetivo inevitável, fascinante. Wuttke faz Arturo Ui, um gângster de Chicago que é a imagem, o clone de Hitler, alvo da parábola de Brecht. Um Hitler que luta contra os barões capitalistas, depois com eles; olhado de cima por eles, e depois olhando de cima para eles. Um populista "working class" que constrói a si mesmo com a ajuda de um fracassado ator shakespeariano, numa cena de ensaio que mais lembra um filme pastelão. Faz o discurso de Marco Antônio, e demora, mas funciona. Sobre um cenário de metrópole contemporânea, com ruído e colunas de metrô, e uma música-tema "pop" insistente e familiar, vai vencendo aos poucos, para o fascínio do espectador. É inteiramente antinaturalista, como um Carlos Menem, um Fernando Collor (ou, quem sabe, um Ciro Gomes). E o público gosta de Arturo Ui, o público gosta de Hitler! Ele fala diretamente à platéia, "nós, os contribuintes". É comum, ridículo, emocionante, empolgante. Num solilóquio entre firme e cômico, em que copia todo o gestual hitlerista, que estudou a fundo, leva o espectador quase ao limite de aplaudir Arturo Ui em cena aberta. Aplaudir Hitler em cena aberta. Exige "fé", "fé", "fé", "fé", "fé". E o público devolve fé. "Vocês têm que acreditar", exige. E o público acredita. Mas é por um segundo. Nem é preciso dizer, como no epílogo cortado, que "o colo que criou" Hitler ainda está fértil. O espectador sente que é ele próprio o colo que pode criar outro Hitler. É aterrorizante, politicamente revelador como só uma comédia, só um comediante eletrizante. Fascinante é a palavra. Certamente apela mais aos sentidos do que à razão, mas deixa ali, nos sentidos, uma semente de desconfiança, como queria Brecht. Um autor, afinal, superior ao teórico. E um inesperado legado que o aqui diretor Heiner Mueller deixa, em seu agourento espetáculo. Texto Anterior: "Olha eu na TV", festeja Próximo Texto: Orquestra estraga Mozart Índice |
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