São Paulo, segunda-feira, 13 de outubro de 1997
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Festival trata público como refugiado de guerra

MARCELO RUBENS PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Certamente, as estrelas internacionais tiveram todas as exigências atendidas, hospedaram-se nos melhores hotéis, foram cortejadas pela produção e jamais se esquecerão da hospitalidade brasileira.
Já do palco para a frente, onde está quem paga de R$ 40 a R$ 100 pelo show de Jamiroquai, o dobro do que se paga, em média, nos Estados Unidos, o festival é um lixo.
Como canta Ella Fitzgerald, "between the devil and the deep blue sea" (entre o diabo e o profundo mar azul). É óbvio que quem organizou a versão 97 do Free Jazz não conhece São Paulo.
Marcar show às 19h no Bourbon Street, em semana sem rodízio, é levar ao pânico os amantes de jazz e micar os shows. Não por outra, havia pouco mais de cem pessoas na abertura do festival.
Depois, corre-se ao Palace; então, volta-se ao Bourbon. É para quem é barão e tem dinheiro saindo pelo porta-luvas -estacionamentos cobram, em média, R$ 15.
No Palace, numa prática que se tornou hábito, tinha gente saindo pelo ladrão -a ganância do capitalismo de jegue diz que o número de ingressos vendidos deve ser superior à capacidade da casa.
O público se sente uma minoria étnica fugindo de um país em guerra. O calor é insuportável. Os seguranças proíbem quem quer respirar ar puro, com o refrão: "Quem sai não entra".
Vi a seguinte cena: no hall de entrada do Palace, lotado, no intervalo entre dois shows, pessoas (consumidores) pedindo aos seguranças para colocar, por segundos, o nariz na porta semi-aberta.
Eu, do lado de fora, assistia à fila de espera de um campo de concentração nazista. Muitos iam embora. Aquilo era tudo, menos jazz.
Uma paraplégica, Mara, é carregada para fora. Não aguentou o aperto. Tudo bem, dinheiro jogado fora. Como assim, tudo bem?
Até hoje, muitas casas noturnas de São Paulo não reservaram lugares aos que compõem 15% de sua população, os portadores de deficiência.
Vou contar uma historieta. Eu estava num cinema adaptado, em San Francisco, Estados Unidos. O filme era uma droga. Saí nos 15 minutos de projeção. O bilheteiro, aflito, veio atrás de mim.
Perguntou por que eu estava indo embora. Expliquei que o filme era ruim. Ele, então, me devolveu o dinheiro do ingresso. Claro. Como consumidor, se não gosto do produto, me devolvem o dinheiro.
O festival não encontrou seu espaço, em São Paulo. Saudade dos festivais de jazz no Anhembi. O Free Jazz precisa, urgentemente, repensar a que veio.
Não tem a dignidade do gênero musical que representa e está em seu nome e não merece nosso dinheiro suado. O Palace deveria ter sido interditado, na última sexta-feira -num incêndio, aconteceria uma tragédia.
Os seguranças deveriam receber aulas de como tratar um cidadão em tempos de paz, e os portadores de deficiência deveriam se acorrentar em frente às casas noturnas para exigir que se cumpra a lei, como a que exige distância mínima entre as mesas.
Ah, sim: quem levou a bolsa de Marisa Orth, que devolva ao menos os documentos.

LEIA MAIS sobre o Free Jazz à pág. 5-12

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