São Paulo, terça-feira, 14 de outubro de 1997
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Muita energia e pouca luz

JOSÉ SERRA

Na sua coluna "Lanterna na popa" de 28/9, o deputado Roberto Campos nos brindou com mais um dos seus persuasivos manifestos. Dessa vez, o alvo foram os "Estados chorões", que reclamam de perdas na arrecadação do ICMS devido à chamada Lei Kandir, que desonerou da cobrança desse imposto estadual bens de capital, bens de uso e de consumo das empresas e exportações de produtos primários e semi-elaborados. Tal lei, diga-se, foi baseada na própria emenda constitucional do governo, enviada um ano antes.
Campos tem toda razão quando fala que tributar exportações é um anacronismo e um contra-senso. Mas vale a pena apontar alguns dos seus equívocos sobre a "conversa de chorões".
Para começar, ele afirma que "a tributação estadual sobre exportações de bens primários e semimanufaturados foi uma das funestas invenções da Constituição de 1988". Não é verdade.
A Constituição de 1967, aprovada no final do primeiro governo militar, do marechal Castello Branco -certamente depois de revisada pelo então ministro do Planejamento, Roberto Campos-, assegurou que apenas as vendas ao exterior de produtos industrializados estavam isentas do ICM, ficando outras eventuais isenções dependentes de uma lei (parágrafo 7º do artigo 23). Se intenção funesta houvesse, portanto, teria sido da Carta de 1967.
De forma idêntica à sua antecessora, a Constituição de 1988 também isentou os produtos industrializados e deixou para a lei complementar definir os semi-elaborados a ser tributados ou mesmo isentar quaisquer produtos que desejasse (artigo 155, incisos 10 e 12).
Portanto, não é certo, como diz Campos, que a tributação estadual sobre exportações tenha sido inventada pela Constituição de 1988. A lei prevista por ela é que foi votada no ano passado, estabelecendo as desonerações citadas.
Outra barbaridade cometida pela Carta de 1988, segundo Campos, teria provocado "uma devastação": a abolição da parcela federal nos chamados "impostos únicos" -sobre combustíveis, eletricidade e minérios, sendo esses tributos mais dois impostos seletivos federais (sobre comunicações e sobre transportes) absorvidos pelo ICMS.
De acordo com nosso autor, "isso explica o atual racionamento de energia elétrica, pois a União perdeu o Fundo Federal de Eletrificação, com o qual financiava hidrelétricas interestaduais. Explica também o miserável estado das rodovias federais, privadas de recursos do antigo fundo rodoviário". Essa é uma visão comum entre observadores econômicos, parlamentares e empresas de construção de estradas. Tão comum quanto equivocada. Vejamos por quê.
Ao contrário do que sugerem tais observadores, a arrecadação daqueles cinco impostos, às vésperas da Constituinte, não era expressiva: seu montante declinara quase três vezes entre o começo dos anos 70 e 1987/88: a receita global de todos passou de 1,7% do PIB em 1970 para só 0,58% do PIB em 1987.
Essa redução de receita começou já nos anos 70 e acentuou-se no início dos 80, num processo que culminou com a aprovação da emenda constitucional Passos Porto (nº 23), em dezembro de 1983, em pleno governo Figueiredo. As seguidas mudanças na Constituição ampliaram a participação de Estados e municípios na arrecadação federal, notadamente sobre os impostos únicos.
Assim, caíram de 60% para 40% as parcelas do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos (fonte de recursos para investimentos em rodovias) e do Imposto Único sobre Energia Elétrica que ficavam com a União. A parte do governo federal referente à receita do Imposto sobre Minérios foi reduzida para apenas 10%. Dos três impostos únicos, o IULCG era o mais importante: em 1968, quando começou a ser arrecadado, respondeu sozinho por 16,2% da receita tributária da União. Em 1984, representava 1,33% da arrecadação federal.
O fato é que o interesse do governo federal pela receita desses tributos foi diminuindo na proporção direta em que eles perdiam importância. Tanto que a Receita Federal deixou de tomar medidas para compensar a corrosão de suas receitas reais pela superinflação.
Assim, a fatia dos impostos únicos no PIB continuou a declinar rapidamente, de modo que em 1988 restava à União uma receita de apenas 0,38% do PIB, após as transferências para os Estados.
Não foi, portanto, a Constituição de 1988 que provocou a "devastação" de que fala Campos. Quem está mais familiarizado com as vicissitudes do setor elétrico nos anos 80 e 90 sabe que os fatores relevantes para explicar a queda de investimentos no setor (no âmbito federal como no estadual) foram a compressão das tarifas reais, a dificuldade de continuar tomando empréstimos externos e a explosão dos seus serviços financeiros, em face do seu alto endividamento externo (combinado com duas máxis, em dezembro de 1979 e fevereiro de 1983), bem como a confusão estabelecida nas contas de suas subsidiárias no que se refere ao fornecimento de energia. Quanto às estradas, é no mínimo insensato atribuir os buracos à Carta de 1988; nesse ano, a arrecadação do IUCLG representava apenas 0,8% da receita global do governo.
O que a Constituinte fez foi transferir esses tributos para a base de arrecadação do ICMS. Nesse caso, Campos parece desconsiderar que a absorção dos cinco impostos por um tributo de valor agregado eliminou a nociva cumulatividade tributária que provocavam (no estilo da Cofins).
Além disso, como imposto estadual, passou a gerar créditos para empresas consumidoras desses insumos, o que não ocorria. Tampouco cabe desprezar o fato de a Carta ter eliminado cinco impostos e diminuído vinculações de receitas e rigidez orçamentária.
Na segunda parte do artigo, Campos disserta sobre São Paulo. Sua lanterna, nesse caso, parece iluminar menos a razão do que o preconceito regional ou a tomada de posição política pepebista.
Primeiro, afirma que São Paulo foi o maior beneficiário da citada realocação de receitas da União para os Estados, via absorção dos impostos únicos pelo ICMS. Fornece dados? Nenhum.
Em 1988, São Paulo arrecadou 43% do ICM nacional; em 1996, arrecadou 38% do ICMS recolhido no país. Onde estão os efeitos da absorção dos impostos únicos mencionados por Campos?
O fato é que, no agregado, São Paulo foi um dos Estados cuja receita tributária disponível cresceu menos após a nova Constituição. Tomando como referência o período de 1988 a junho de 1995 (ou seja, incluindo os ganhos do primeiro ano do Real), a receita real do Estado cresceu 4,1% ao ano -a menor entre todos os Estados da Federação.
Nesse mesmo período, o crescimento real da receita tributária disponível do Rio de Janeiro foi de 5,6% ao ano; em Minas Gerais, de 5,9%; na região Norte, de 10,2%; de 7,7% na região Centro-Oeste; de 5,8% no Nordeste.
Em segundo lugar, Campos assegura que São Paulo beneficiou-se de alíquota zero do ICMS nas exportações interestaduais de energia, em detrimento de Estados como Rio, Paraná e Minas.
Certo? Errado. São Paulo perde com a não-tributação interestadual sobre combustíveis (R$ 118,6 milhões em 94), pois é um exportador líquido de derivados para outros Estados. E, mesmo que a energia elétrica (em que São Paulo é deficitário) também fosse tributada na origem, no cômputo final entre esses dois insumos, São Paulo acabaria perdendo cerca de R$ 45 milhões.
Esses dados, é bom que se diga, provêm de estudos das Secretarias da Fazenda dos Estados do Rio e do Paraná, os quais mostram que quem ganha com a não-tributação interestadual sobre combustíveis e energia elétrica são 17 outros Estados -entre eles, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Santa Catarina.
Em terceiro lugar, depois de criticar o governador Mário Covas por ter demorado em largar a propriedade do Banespa e elogiá-lo por sua autoridade fiscal, "que lhe permitiu reduzir as despesas do funcionalismo a 60% da receita", Campos lamenta que São paulo tenha sido o que menos privatizou dentre os grandes Estados, devido a "cacoetes estatizantes" de Covas.
Não parece mais correto avaliar um governo pelo que faz no conjunto de seu mandato, especialmente num terreno no qual as realizações são tão descontínuas ou discretas no tempo?
Há que considerar, ainda, que a privatização de uma empresa do porte da CPFL -cujo processo de venda, se a Justiça deixar, começa no mês que vem (preço mínimo: R$ 4,3 bilhões)- leva muito mais tempo do que a privatização da Companhia de Eletricidade do Rio (valor de R$ 606 milhões).
Por fim, Campos lembra que "o rico Estado de São Paulo não é, aliás, um exator negligente". Deveria ser negligente? Mas o argumento talvez seja importante para introduzir outra comparação do articulista para sustentar a tese dos governadores choramingões.
É quando ele diz que São Paulo produz um terço do PIB nacional e representa 22% da população, mas a receita do ICMS paulista equivale a 40% do total nacional. E alinha dados mostrando que a arrecadação "per capita" em São Paulo é maior que a de outros Estados. Mas são comparações enganosas.
São Paulo arrecada mais porque a renda estadual "per capita" é a maior de todas. Cada paulista recolhe, em média, cerca de 9,9% de sua renda, proporção semelhante à dos gaúchos, menor que a dos mineiros, cearenses ou goianos e só um pouco maior que a parcela recolhida pelos cariocas.
Se é para falar de voracidade, bem mais eficaz foi a Receita Federal, que no período de janeiro a agosto deste ano arrecadou em São Paulo R$ 946 "per capita", muitíssimo mais que os R$ 252 arrecadados em Minas, os R$ 375 recolhidos no Rio Grande do Sul ou os R$ 112 arrecadados na Bahia e em Sergipe. Assim, a arrecadação federal "per capita" em São Paulo foi 3,75 vezes maior do que a de Minas, embora a renda seja apenas duas vezes maior que a mineira.
Como se vê, dessa vez, a lanterna de popa do deputado Roberto Campos parece ter tido problemas. Gastou muita energia e produziu pouca luz. Resta o consolo de que, em matérias complicadas, como a tributária e os problemas federativos, é fácil se enganar, mesmo em se tratando de parlamentares experientes e afeitos à matéria.

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