São Paulo, quinta-feira, 16 de outubro de 1997
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SP vê o melhor dos festivais europeus

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Em outros anos, lembrar que os premiados dos festivais internacionais são a grande atração da Mostra de São Paulo seria chover no molhado.
Nesta 21ª edição do evento que começa amanhã e vai até o dia 31, a notícia tem um significado diferente. Nunca como neste ano foi tão evidente a sintonia entre o gosto dos júris e o dos cinéfilos.
Raramente essas duas instâncias se encontram, sobretudo em Cannes, a não ser para divergir.
Desta vez, o júri presidido pela atriz francesa Isabelle Adjani afastou qualquer sombra de conivência com a produção comercial e dividiu a Palma de Ouro entre "Gosto de Cereja", do iraniano Abbas Kiarostami, e "A Enguia", do japonês Shohei Imamura.
Se a premiação tivesse sido feita por um comitê das revistas "Cahiers du Cinéma", "Les Inrockuptibles" e "Traffic" e do jornal "Libération", ninguém ia se espantar.
Veneza não ficou atrás e deu o Leão de Ouro a "Hanna-Bi", de Takeshi Kitano, considerado a grande revelação do cinema japonês atual (leia texto à pág. 4).
Esta lista de destaques fecha-se gloriosamente com "Viagem ao Princípio do Mundo", do português Manoel de Oliveira, que não ganhou nada em Cannes. Em todo caso, ele é uma espécie de premiado honorário do festival francês, que neste ano oscilou, justamente, entre consagrar o não consagrado e contrariar parte da crítica.
Imamura
Shohei Imamura é o principal homenageado com uma retrospectiva na Mostra de 97 (leia texto à pag. 4). Nada mais justo, já que ele é uma descoberta da cinefilia paulistana dos anos 60/70, quando a crueza de seu estilo marcou época nos cinemas do bairro oriental da Liberdade, com filmes como "Todos Porcos", "A Mulher Inseto", "Segredo de uma Esposa" e "Minha Vingança".
Depois é que veio a fase "off Liberdade", com seus filmes mais conhecidos internacionalmente: "Aconteceu no Fim da Era Tokugawa" e, sobretudo, "A Balada de Narayama" (Palma de Ouro em Cannes/83).
Estão programados 12 filmes de Imamura, inclusive "A Enguia", que será exibido apenas uma vez, no próximo sábado.
Kiarostami
A Palma de Ouro para "Gosto de Cereja", de Abbas Kiarostami, foi considerada, por muitos, uma premiação política, uma espécie de desagravo aos problemas que o cinema iraniano e, em particular, Kiarostami enfrentam com a censura de seu país.
Talvez seja uma visão injusta. Com efeito, "Gosto de Cereja" surpreende. Kiarostami mostra-se sombrio, o que até então não havia acontecido nem mesmo quando tratava de catástrofes como terremotos.
Aqui, ele aborda com audácia dois tabus culturais profundos (e não só entre os muçulmanos): homossexualismo e suicídio. Toca-os com discrição -não como nesses filmes militantes. A paisagem árida, os sinais de uma sociedade militarizada (que se espalha um pouco por todo o filme), o rosto neutro do personagem central (que exprime uma depressão e uma desesperança profundas) dominam a cena.
Kiarostami parece nunca ter estado tão próximo de Ozu, já que a sensação de melancolia e de vida desperdiçada atravessam o filme com uma intensidade muito forte.
Chahine
"O Destino" vai nos apresentar a uma cinematografia forte e popular, como a egípcia. Como Kiarostami ou Makhmalbaf no Irã, Youssef Chahine não foge aos confrontos políticos.
E o embate é, novamente, com os integristas muçulmanos. De acordo com o crítico Antoine de Baecque, em seu 32º filme Chahine trata da vida do filósofo Averroes a partir de idéias como prazer do espetáculo, desejo sensual, tolerância, hedonismo -coisa de deixar xiita doente.
Há por que esperar com ansiedade o filme e também por que lamentar que a mostra não tenha conseguido trazer a retrospectiva do cineasta.
Oliveira
"Viagem ao Princípio do Mundo", de Manoel de Oliveira, começa como um filme de Marcello Mastroianni (em sua derradeira aparição no cinema). Do meio para o fim Mastroianni se apaga e dá lugar à história do ator francês que busca sua tia portuguesa.
A vitalidade de Oliveira (aos 89 anos) é colossal, assim como a de seu filme, cujo verdadeiro problema parece consistir na transformação de um rosto gaulês em um rosto lusitano. Transformação e filme, exemplares.
Para completar, a mostra traz uma retrospectiva de filmes alemães feitos entre 1911 e 1919, antes que "O Gabinete do Dr. Caligari", de Robert Wiene, instaurasse o primado da escola expressionista.

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