São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 1997
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Quem ganhou com a crise do Sudeste Asiático

MAILSON DA NÓBREGA

Sintomas de crise no Brasil foram avistados em agosto por um grupo munido de lentes especiais, o qual prognosticou sua iminente irrupção. O clima gerado pelo susto e a decorrente volatilidade levaram uns poucos a ganhar fortunas no mercado financeiro.
A crise tinha contornos nítidos: o ataque especulativo bem-sucedido ao baht, a moeda tailandesa, o qual atingiu também os vizinhos Malásia, Indonésia e Filipinas. Ela nos chegaria por contágio, se dizia.
Os que se julgam dotados de poderes premonitórios comemoraram os sinais de cumprimento de suas profecias. Afinal, tinham avisado...
No primeiro momento, pensou-se, o governo manteria a política cambial. Logo, aumentaria os juros. Era uma lógica irrepreensível para quem pensava na inevitabilidade da queda no fluxo de recursos externos para o país, provocada pela crise asiática.
À medida que o susto aumentava, começou-se a duvidar da preservação da política cambial. Muitos dos que possuíam ativos em moeda estrangeira, como as multinacionais, buscaram protegê-los com operações de "hedge".
Foi uma festa para os que estavam convencidos da manutenção da política cambial e da tendência da taxa de juros. Por isso, decidiram bancar o risco, atuando nos mercados futuros, na ponta contrária à dos assustados.
O clima perdurou por pelo menos dois meses e melhorava (para quem bancava o risco) sempre que a situação piorava no Sudeste Asiático. O primeiro-ministro da Malásia, Mahathir Mohamad, deu uma grande e estúpida contribuição à volatilidade.
À moda de muitos de nossos políticos, o dr. Mahathir deitou falação contra os especuladores. Enxergou uma armação racista entre governos ocidentais, os judeus e o investidor George Soros para bloquear o desenvolvimento da região.
Com o tempo, a realidade começou a se impor. Análises sérias sobre a crise asiática e a situação brasileira indicaram que havia raríssimos pontos de contato entre os dois casos.
Lá, os especuladores perceberam que, apesar das elevadas reservas internacionais e da satisfatória situação fiscal, o governo tailandês não tinha como rechaçar o ataque.
Mais de uma década de valorização cambial e a fraca supervisão bancária permitiram excessiva alavancagem nos empréstimos dos bancos (chegaram a mais de 140% do PIB) e um boom especulativo no mercado imobiliário.
Se a moeda desvalorizasse, a indústria de construção civil quebraria. Se os juros aumentassem, o sistema financeiro entraria em crise. Isso somente poderia acontecer, portanto, por uma pressão externa irresistível: o ataque especulativo bem-sucedido.
Os outros três países padeciam da mesma doença: a excessiva alavancagem dos bancos. Por isso, foram colhidos pela mesma onda. Agora, a recuperação dependerá dos fundamentos econômicos. A Tailândia deve ser o que vai pagar o preço mais alto.
No Brasil, as diferenças em relação ao Sudeste Asiático terminaram sobressaindo. Para começar, viu-se que não havia o estopim da crise, pois o crédito do nosso sistema financeiro é pouco superior a 30% do PIB.
É verdade que o déficit do balanço de pagamentos em conta-corrente alcançou nível preocupante (deve ser de 4,8% do PIB neste ano) e o governo não conseguiu realizar um ajuste fiscal capaz de permitir uma flutuação administrada do câmbio.
Felizmente, a privatização vai realizar tripla missão na travessia: contrabalançar a falta do ajuste fiscal, gerar recursos para financiar o déficit em conta-corrente e contribuir para a eficiência produtiva da economia, aumentando a competitividade.
É preciso reconhecer, todavia, que nossa atual trajetória pode colocar-nos na linha de tiro de um ataque especulativo, principalmente se o governo continuar falhando nas principais questões estruturais.
Em suma, no curto prazo o que nos ameaça não são as vicissitudes do Sudeste Asiático, mas uma queda de liquidez internacional provocada por um grande aumento das taxas de juros nos EUA. No longo prazo, o risco está na ausência de reformas.
Isso parece ter ficado mais claro nos debates da recente reunião do FMI em Hong Kong, segundo os excelentes relatos de Celso Pinto nesta Folha.
É claro que somos vulneráveis a um acidente. Houve muitas crises detonadas por movimentos irracionais do mercado. Por ora, entretanto, a nossa "crise" serviu apenas para os ganhos dos que imaginavam que ela não viria. Alguém certamente perdeu.

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