São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 1997
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Saramago explica ausência de nomes em 'Todos os Nomes'

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A FRANKFURT

O português José Saramago é uma das grandes estrelas da Feira do Livro de Frankfurt. Seu rosto está estampado nos principais jornais alemães, e cada passo seu é acompanhado por uma legião de câmeras e microfones.
O autor, que está em Frankfurt para lançar seu novo romance, "Todos os Nomes", em edições simultâneas em Portugal, Espanha e Brasil (Companhia das Letras), falou na tarde de anteontem à Folha no estande da editora portuguesa Caminho. Momentos antes, Saramago havia recebido ali a visita de cortesia do teatrólogo italiano Dario Fo, que há uma semana ganhou o Nobel de Literatura.
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Folha - Como lhe surgiu a idéia do romance "Todos os Nomes"?
José Saramago - A raiz do que viria a ser meu livro, por estranho que pareça, foi a busca que eu tive que fazer da data e do local da morte do meu irmão, que morreu quando tinha quatro anos e eu tinha dois.
Quando eu estava a reunir materiais para um livro que quero escrever sobre minha vida até os 14 anos, "O Livro das Tentações", descobri que no registro civil da nossa aldeia não havia referência à morte dele, por causa de uma falha burocrática.
Minha busca, que não tem nada que ver com a história contada no romance, levou-me a essa idéia de alguém que procura alguém.
Folha - Apesar do título do livro, nele só o protagonista tem nome, e ainda assim é quase um não-nome, José. Também no "Ensaio sobre a Cegueira" os personagens não tinham nome. Por quê?
Saramago - É como se, neste momento, os temas que eu trato, sobretudo depois do "Ensaio sobre a Cegueira", fossem de caráter tão amplo e geral que os nomes deixam de ter sentido. Chamar o personagem Antonio, ou Manuel, o que significa?
A epígrafe que coloquei no romance, que é retirada de um livro que não existe, o "Livro das Evidências", diz: "Conheces o nome que te deram, mas não conheces o nome que tens". É uma convicção profunda minha: não sabemos que nome temos. Sei que me chamo José Saramago, mas o que isso significa? Quem sou eu de fato?
Folha - Essa ausência de nomes também responde a uma depuração da sua escrita?
Saramago - Sim. Outro dia tive essa intuição: é como se, até o "Ensaio sobre e Cegueira", eu estivesse preocupado com a estátua, a figura, o modulado, a fisionomia, as roupagens. E agora é como se eu estivesse mais interessado na pedra de que a estátua é feita.
Por isso, provavelmente, é que meu estilo está se tornando cada vez mais depurado, mais austero, sem ornamentos. É uma necessidade de expressar o máximo de sentido num mínimo de palavras. Talvez seja por isso que meus livros tenham ficado mais curtos.
Folha - O protagonista de "Todos os Nomes" se assemelha a um romancista, na medida em que tira da massa anônima um personagem e lhe dá uma biografia.
Saramago - Sim, mas enquanto no romancista isso é consciente, nele não é. É o acaso que lhe traz aquele nome. Depois, sim, ele de certo modo vai construindo uma mulher, uma idéia de mulher.
Folha - Seu livro ainda nem saiu e já há gente fazendo um paralelo com Kafka. Não lhe parece que o sentido do livro é totalmente oposto a Kafka?
Saramago - Sim, sim. Há várias diferenças, a começar pela diferença de gênio. Mas há também esta: nos romances de Kafka os indivíduos não têm salvação, porque o poder não deixa que eles saiam de um limite cada vez mais estreito, e vai reduzindo mais e mais esse espaço, até a paralisação total do personagem. No meu livro, não. São indivíduos que querem quebrar a muralha, ir mais além.
Mas eu gostaria de dizer que, para mim, as três grandes figuras literárias do século 20, aquelas que definem o espírito do século, são Kafka, Pessoa e Borges.
Eles não falam quase nada daquilo que é o século 20 no sentido material, contudo é na obra deles que está o sentido do século.
Folha - Há em certo momento de "Todos os Nomes" a mudança súbita para a primeira pessoa no início de um capítulo, voltando logo a terceira pessoa a assumir o relato. Há uma razão para isso?
Saramago - Há uma razão prática, que provavelmente o divertirá. Se eu descrevesse tudo aquilo que o personagem descreve em seu caderno de apontamentos, o capítulo anterior ficaria por demasiado comprido (risos). Então ele interrompe-se ali e continua noutro lugar, que já é o da escrita da personagem, não o da minha.
Folha - Como o sr. recebeu o gesto de Dario Fo, que veio cumprimentá-lo?
Saramago - Foi um momento de fraternidade pura, algo que acho que nunca aconteceu na história do Prêmio Nobel. Ele ganhou, eu não ganhei, encontramo-nos aqui e falamos como duas pessoas que se estimam mutuamente, sem nenhuma tensão.
Folha - O sr. ficou surpreso com a premiação dele?
Saramago - Confesso que fiquei. Se me perguntassem há dez dias quem tinha chances, mesmo excluindo minha própria hipótese, eu citaria uma série de outros escritores, e não o incluiria na lista. Mas a Academia Sueca quis assim e eu só posso felicitá-lo.
Folha - Apesar das imensas diferenças literárias, o sr. e ele têm afinidades políticas, não?
Saramago - Há uma afinidade política e ideológica, e, além disso, temos os mesmos inimigos, os reacionários da política e da religião. Se nossos inimigos são os mesmos, como é que nos iríamos converter em inimigos um do outro?

LEIA MAIS sobre a Feira de Frankfurt e sobre Dario Fo à pág. 4-7

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