São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 1997
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'Guaramiranga era uma espécie de paraíso'

RACHEL DE QUEIROZ

"No fim do ano de 1919, terminava uma grande seca, no Ceará. Nossa família vinha de uma experiência de emigração para o Pará; durou dois anos a experiência, que se alongou justamente por causa da tal seca. Mas em outubro de 19 voltamos à terra, pai, mãe, três filhos e um por nascer. Nosso destino seria o sertão, mas isso no momento, era impossível. A seca arrasara tudo: gado, terra e gente. Então meu pai teve uma idéia: "Vamos esperar o inverno em Guaramiranga".
Agora é preciso explicar o que já era então Guaramiranga. O nome nascera do sítio fundado por meu bisavô. E do sítio se estendera à vila, então pequena, apenas com duas ruas em cruz, a que vinha do Monte-flor para o Macapá, e a que nascia do portão do sítio Guaramiranga e subia até à igrejinha de Nossa Senhora de Lourdes, lá no alto. O cruzamento se fazia defronte à farmácia e ao sobradinho do Rodrigo Caracas.
Aninhada num desvão, entre os morros da Serra de Baturité, Guaramiranga era uma espécie de paraíso para a gente lá de baixo: litoral e sertão. O clima adorável, friozinho pela manhã e à boca da noite, cada casa com o seu jardim; mesmo as que davam frente para a rua, tinham o jardim no quintal. Meu tio Matos Brito, dono então do sítio Guaramiranga, abrigava a sua enorme família de 13 filhos num sobradão erguido no começo da rua, junto ao próprio portão do sítio, cuja casa velha não daria espaço para tanta gente. Sem contar os hóspedes. Pois o prêmio mais cobiçado para a meninada e adolescentes da família, eram umas férias em Guaramiranga. Uma semana já fascinava. Um mês, era raro conquistar-se.
(...)
Guaramiranga cresceu, de vila passou a cidade; não perdeu os seus encantos, nem a sua magia. Com a queda do café, ficou nos alambiques ("Sou a cana jovial, do café a doce irmã..." cantava a deusa no drama) e vai se mantendo com a exportação de flores e frutas. Frutas incomparáveis que, além do sabor e das cores vivas, têm um cheiro delicioso, especial. (...)
Creio que a serra, e especialmente Guaramiranga, continua a ser o resort privilegiado para os veranistas urbanos. Não deve ter crescido muito, pois a sua riqueza principal, o café, entrou em decadência. Dizem que os grandes sítios, são hoje propriedade de gente rica, que os usa como local de repouso e veraneio.
Mas a alma da serra, o cheiro da serra, a água da serra, as crianças de faces cor de maçã, tudo isso ainda deve permanecer. Qualquer dia vou lá, conferir."

Trecho de "Guaramiranga"

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