São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 1997
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O dia em que preferi Tenório a Drummond

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Nada como um lugar-comum para iniciar conversa, discurso ou artigo: viver é escolher caminhos. Não apenas entre o bem e o mal, mas entre o açúcar e o adoçante artificial, a água com gás ou sem gás (em Portugal é água com bolhas ou sem bolhas), a praia ou a piscina, a loura ou a morena, virar à direita ou à esquerda.
Na obrigação de suar o rosto para ter o direito de barbeá-lo no dia seguinte, vivi uma dessas opções existenciais. A pauta de reportagem havia previsto uma entrevista com Carlos Drummond de Andrade, poeta que estava fazendo 75 anos, ou com Tenório Cavalcanti, que não estava fazendo nada -o que era um acontecimento em si, pois quando ele fazia alguma coisa dava um bode desgraçado e movimentava os cemitérios adjacentes do Rio.
Antes de me decidir, não me retirei à montanha como Zaratustra, a fim de meditar, orar e murmurar. Optei (péssima palavra que botaram em circulação) por Tenório Cavalcanti e lá fui dar com os costados em Caxias, onde ouvi, pasmo, 40 graus à sombra, a explicação de Tenório sobre a primeira explosão do átomo, evento que motivou o surgimento da Matéria, do Cosmos e dele mesmo, Tenório.
Os colegas estranharam minha escolha. Podia ter dado um confortável pulo ao Posto Seis onde habitava o bardo, e ali, bafejado pela brisa atlântica, bateria proveitoso papo com o poeta -que, por sinal, foi dos pouquíssimos homens a quem fiquei devendo um favor pessoal.
Foi quando o ministro da Guerra moveu um processo na Justiça contra mim. Meu advogado pediu que arranjasse três pessoas para atestar minhas qualidades morais e cívicas, meu exemplar comportamento de cidadão etc. Outro qualquer teria milhões de voluntários que se prestariam a isso, mas foi difícil arranjar três pessoas que mentissem a meu favor.
Os tempos eram duros, comparecer em juízo para contradizer um ministro militar que seria presidente da República era arriscado. Basta dizer que o então presidente da Associação Brasileira de Imprensa tirou o corpo fora, alegando que seria condecorado com a medalha de bons serviços e aquele era um péssimo serviço ao regime.
Drummond se ofereceu para enfrentar o risco. Era meu colega de redação e meu vizinho, ele na Conselheiro Lafaiete, eu na Raul Pompéia. Aos domingos, comíamos a mesma pizza no "Césare" da Joaquim Nabuco. Sabia que o poeta não apreciava dar entrevistas, só o fazia em condições especiais. Seu aniversário seria devidamente comemorado e uma entrevista a mais ou a menos não lhe faria falta. Além do mais, ele escrevia regularmente na imprensa e dizia o que tinha a dizer sem necessidade de intermediários.
O ex-deputado, jornalista, cangaceiro e pistoleiro Tenório Cavalcanti não cultivava tais e tantas dificuldades. Estava em excelente forma, ovante, jucundo e belo. Cabelos compridos, barbas longas e brancas, adquirira a aparência de um nazareno em disponibilidade, o povo simples chegava a confundí-lo com o Jesus Cristo que os pintores da Renascença criaram e que até hoje prevalece. Com o tempo, também ficara parecido com o Zé Sanz, outro personagem folclórico do Rio que se tornara famoso na zona sul por vários motivos, inclusive por só comer sardinhas do Báltico, pela correspondência íntima que mantinha com André Gide e pelo fato de ter dado conselhos a Orson Welles durante a filmagem de "Cidadão Kane".
Era tal a sua semelhança com o Sanz que, durante a entrevista, houve um momento em que pedi: "Sanz, pelo amor de Deus, pare de bancar o Tenório!". Mas Tenório era Tenório mesmo, tinha o olhar esperto do coronel sertanejo que acredita na própria lenda. Mostrou-me o fuzil que matou Lampião, o punhal que pertenceu a Corisco, o crucifixo com que Padre Cícero fazia chover no Ceará. Como peça de honra de seu museu particular, exibiu-me a metralhadora com que despachara os desafetos mais óbvios.
Fez-me vestir a sua famosa capa preta, debruada de cetim vermelho -o que foi uma das poucas glórias que até hoje obtive ao longo dos meus dias sobre a Terra. Tocou piano, e, naquele instante, senti uma emoção dos diabos, pois a música que ele arrancou de um velho piano caindo aos pedaços, cujas teclas estavam amareladas e escuras como uma dentadura manchada de nicotina, parecia uma mistura de Vivaldi e Luiz Gonzaga em ritmo de candomblé. Depois disso tudo, minha vida não seria como antes.
Tenório falou dos começos da Matéria e do fim do mundo. Citou a "Rerum Novarum", mostrou-me o buraco das 37 balas que tinha no corpo, uma delas com o curioso hábito de circular pelas pernas, nos meses pares ficava na perna direita, nos meses ímpares se deslocava para a perna esquerda -o que era mais um problema da ciência do que dele, Tenório.
Recitou Augusto dos Anjos e Fernando Pessoa, só não falou de cibernética porque nada lhe foi perguntado. Posso ter feito péssimas opções pela vida afora. Mas acredito que obrei certo ao preferir Tenório ao Drummond. E tenho certeza de que o poeta, em meu lugar, teria feito o mesmo.

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