São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 1997
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Além da conta

MARTA SUPLICY

Acompanho de longe a discussão entre a sem-terra Débora Rodrigues, que posou nua para "Playboy", e o líder do MST João Pedro Stedile. As recentes acusações do líder do MST a Débora passaram do limite do aceitável.
Não aprecio ver mulheres posarem nuas para revistas masculinas. Não entro na do "nu artístico"; quem posa nua faz isso por narcisismo, para obter projeção ou por dinheiro mesmo.
Ainda assim, nada me faria atirar pedras em quaisquer delas. Fico chateada de ver o corpo da mulher ser mercantilizado. Não me conformo com o fato de que, para sair de uma situação financeira difícil, deslanchar numa carreira ou acumular patrimônio, mulheres submetam-se à cupidez masculina.
O consumo incentivado pelo corpo/objeto da mulher, embora combatido, é ainda uma marca nos meios publicitários. Sempre em situação de inferioridade, com menos poder e status, só neste final de século a situação feminina tem sofrido mudanças concretas. Não só na área de direitos constitucionais, mas na conscientização da população e das próprias mulheres. Entretanto, ainda está longe a mudança na relação homem/mulher. Basta vermos os casos de assédio sexual, estupros, violência sexual na família etc.
Por tudo isso, entendo bem a indignação de Stedile. Para quem luta contra a exploração do ser humano e vive para conscientizar uma parcela enorme de excluídos dos seus direitos à cidadania, dói acompanhar a exploração da venda do corpo de uma mulher -mais ainda de uma companheira do MST.
Mas daí a concluir que a moça está se prostituindo porque ouviu dizer que ela vai comprar uma boate, ou que o convite da "Playboy" visaria desmoralizar o MST, é ir além da conta.
O negócio da "Playboy" é vender, apenas. Primeiro, a revista publicava fotos de modelos perfeitas, lindas. Depois -talvez porque já houvesse tanta mulher nua na praia e na TV-, o diferente passou a ser a nudez de mulheres valorizadas por qualidades especiais: jogadoras de basquete e vôlei, atrizes em evidência, a namorada de alguém famoso e, agora, uma mulher de um movimento social importante.
O que faltou a Stedile foi a compreensão humana da realidade de Débora. Faltou também a solidariedade de quem entende o que é não ter casa, não ter os filhos consigo por não ter como sustentá-los; de um universitário que sabe muito bem o que o capitalismo e o mundo do consumo fazem às pessoas.
As "Déboras" não são ETs num mundo abstrato. Além de cidadania, casa, comida e trabalho, querem também um sapato da moda, um vestido novo, um perfume. Esses quereres não justificam nada, mas ajudam a compreender e a respeitar a complexidade do ser humano.
Débora não tem que ser mandada embora do movimento. Ela irá sozinha, pois suas oportunidades se ampliarão para bem além do cultivo da lavoura. Poderia continuar amiga do MST, pois sempre terá essa vivência na sua bagagem. É uma pessoa boa e inteligente. Não há necessidade de humilhá-la ou desqualificá-la. Quando muito, pode-se aconselhá-la privadamente.
Ela poderá tomar até decisões erradas, como creio que fez quando aceitou o papel de prostituta na novela "A Indomada". Não pelo papel, já consagrado por outras atrizes, mas pela possível vinculação com a "prostituição" do movimento. Essa deve ter sido uma das preocupações que levaram Stedile a agredi-la, em vez de analisar e criticar as garras do sistema. Débora é a vítima que se aproveitou de uma chance de sair das dificuldades em que viveu.
Quem já não cometeu equívocos? São escolhas de quem não tem orientação de empresário ou de amigos do ramo e não está acostumada à voracidade da sociedade de consumo. Mas Débora vai aprender. Já aparenta estar aprendendo, a julgar por suas declarações: "Se resolver comprar (uma boate), compro. É direito de qualquer cidadão comprar o que bem entender. Só que não é o meu ramo. Se tivesse que comprar algo, compraria um caminhão".
Débora, ao contrário de Stedile, parece saber a diferença entre posar nua, aproveitando-se de uma oportunidade do sistema, e se prostituir.
A cúpula do MST está esticando a corda além do necessário. Mesmo que policiais grosseiros agridam mulheres sem terra com perguntas do tipo "qual é a próxima a posar nua?", não cabe jogar pedras em Débora, mas sim colocar esses indivíduos no seu lugar.
E não me venham dizer que as companheiras são umas tontas que não sabem responder a esse tipo de provocação. Isso tem a ver com o machismo, não com o MST; tem a ver com o desrespeito à mulher e à sua liberdade, que pelo jeito grassa em todos os campos.

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