São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 1997
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Reforma social-democrática

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

A reforma administrativa iniciada pelo governo Fernando Henrique Cardoso em 1995 caminha firmemente para se tornar a terceira e talvez a mais importante reforma da história do país.
A maneira de organizar e gerir o aparelho público passa por profunda transformação em nível federal, estadual e municipal. No entanto, na medida em que imprensa e público identificam a reforma com a emenda constitucional correspondente, que caminha devagar, mas satisfatoriamente no Congresso, não percebem quão longo foi o caminho percorrido em 20 meses.
Completada a reforma, teremos no Brasil um Estado mais moderno e eficiente, no qual os direitos sociais serão garantidos por meio de serviços com melhor qualidade, a um custo menor.
Isso será possível graças ao uso de organizações públicas não-estatais mais autônomas e responsáveis administrativamente, que serão objeto de controle de resultados pelo núcleo estratégico do Estado e de controle social direto pelas comunidades a que servem.
No Brasil houve, antes da atual, duas reformas importantes: a de 1936, que profissionalizou a administração pública, tornando-a burocrática, e a de 1967, que, percebendo a superação dos procedimentos burocráticos rígidos, buscou implantar uma "administração pública para o desenvolvimento" por uma radical autonomização da administração indireta (autarquias, fundações de direito privado e empresas).
O avanço representado pela segunda reforma foi, porém, perdido quando os constituintes de 1988 optaram por um retrocesso burocrático, que ignorou todas as tendências recentes da administração pública. O resultado foi o surgimento de privilégios inaceitáveis e um enorme aumento do custo do aparelho governamental, sem que em nada melhorassem os serviços do Estado.
A partir de 1995, entretanto, o país voltou à fronteira mundial das reformas administrativas, quando o novo presidente aprovou e decidiu implementar o Plano Diretor da reforma do aparelho do Estado, que visa estabelecer uma "administração pública gerencial" de caráter social-democrático.
Gerencial porque busca inspiração na administração das empresas privadas, cujo desenvolvimento teórico e prático foi imenso neste século. Social-democrático porque a) afirma o caráter específico da administração pública, que não pode ser reduzida à administração de empresas; b) reafirma o papel estratégico de uma burocracia profissional e procura fortalecê-la, ao mesmo tempo que propõe mudar seus métodos de gestão e principalmente as instituições em que opera; c) combina o controle por resultados e o controle por competição administrada, desenvolvidos na área privada, a mecanismos de controle social inspirados na democracia participativa direta; d) tem como prioridade introduzir sistemas descentralizados e técnicas de gestão moderna na área social, aumentando sua eficiência.
Essa última característica da reforma é essencial. Para a social-democracia, o Estado tem a obrigação moral de garantir os direitos sociais; deve e pode ser mais eficiente do que o setor privado no fornecimento desses serviços, com a qualidade e o custo necessários.
Essa segunda afirmação tem sido criticada pelos neoliberais -muitas vezes com razão- devido à prática, comum neste século, de o Estado realizar diretamente os serviços sociais e científicos, empregando para isso professores, médicos, enfermeiras como se fossem burocratas estatais e submetendo-os aos mesmos controles e restrições.
Rompendo com essa prática, os serviços sociais no Brasil continuarão a ser garantidos pelo Estado, a educação de primeiro e segundo grau e a saúde continuarão a ser direitos universais; mas sua execução deverá ser feita por organizações públicas não-estatais, entidades sem fins lucrativos, de direito privado, voltadas para o interesse público.
Essas instituições, que na Grã-Bretanha são chamadas de "quangos" ("quasi non-governamental organizations"), são chamadas no Brasil, pelo Plano Diretor, de "organizações sociais". As duas primeiras organizações sociais do governo federal acabam de ser criadas. São a Fundação Roquette Pinto (TVE) e um centro de pesquisas nucleares do CNPq em Campinas. A Bahia e o Pará já aprovaram leis criando organizações sociais; Minas Gerais e a cidade de Curitiba estão apresentando projetos de lei no mesmo sentido.
A transformação dos hospitais estatais ingleses em organizações sociais e a adoção de um sistema de quase-mercado, levando-os a competir por verbas públicas, tornaram o National Health Service (público, não-estatal) um sistema eficientíssimo, que custa por habitante/ano o equivalente à metade do sistema de saúde francês (estatal) e a um terço do sistema americano (privado). Esse fato, que confirma a tese social-democrata, foi reconhecido pela "The Economist" (15/3), apesar do liberalismo radical da publicação.
No Brasil, o governo FHC está conduzindo o SUS para a mesma direção do NHS, conforme prevê a norma operacional básica 96, que o Ministério da Saúde vai aos poucos, mas determinadamente, implantando, para transformar em realidade os princípios gerenciais da social-democracia.

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