São Paulo, sábado, 18 de outubro de 1997
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Mia Couto recria português de Moçambique

JOSÉ GERALDO COUTO
ENVIADO ESPECIAL A FRANKFURT

O moçambicano Mia Couto, 42, um dos estrangeiros incorporados à delegação lusófona presente à Feira do Livro de Frankfurt -em que o país-tema é Portugal-, é hoje o escritor africano de língua portuguesa de maior projeção na Europa.
Seus livros já foram traduzidos para dez línguas. Dois deles foram lançados no Brasil, pela Nova Fronteira: "Terra Sonâmbula" (romance) e "Histórias Abensonhadas" (contos).
O escritor, que está para lançar seu nono livro, o romance "Mar Me Quer", é filho de imigrantes portugueses. Nos anos 70, largou o curso de medicina para aderir à luta pela independência de Moçambique. Trabalha hoje como biólogo na área da ecologia.
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Folha - Sua literatura tem sido comparada ao realismo fantástico latino-americano. Como o sr. vê essa aproximação?
Mia Couto - O termo fantástico foi criado por estudiosos e acadêmicos europeus para designar o que, para nós, nos dois continentes, não é, de modo algum, fantástico, é quase a realidade.
Mas há uma grande diferença de culturas, sobretudo no que se refere à religião, e quem diz religião diz o lugar dos mortos. Não somos tão marcados pela religião católica quanto os latino-americanos.
As religiões de base que nos marcam são as religiões de raiz banto, para as quais os antepassados são os deuses.
Eu tenho os deuses da minha própria família, você tem os da sua. Como somos, eu e você, os dois Couto, provavelmente nossos deuses são comuns lá em algum momento do passado.
Folha - Não há semelhança com a cultura negra brasileira?
Couto - A cultura negra que o Brasil recebeu é da África ocidental: Angola, Guiné... A África oriental é uma África diferente. No caso de Moçambique, por exemplo, não existem os orixás que vocês herdaram do candomblé.
Folha - A adesão de Moçambique à Commonwealth britânica foi vista como um abandono da língua portuguesa.
Couto - Moçambique aderiu à Commonwealth, mas não alterou a situação da língua portuguesa como sua única língua oficial.
Essa polêmica foi criada a partir de fora. Quando aderiu à Commonwealth, Moçambique já havia aderido à comunidade dos países árabes e também à dos países de língua portuguesa. A elite que governa o país entende isso como estratégias para colocar Moçambique no mundo.
A idéia de que Moçambique abandonou o português em favor do inglês foi criada por certos setores de Portugal e está associada a uma visão de perda do império.
Folha - Antonio Callado escreveu que Moçambique aderiu à Commonwealth porque Brasil e Portugal deram-lhe as costas.
Couto - Com todo o respeito a Callado, a quem sempre admirei, essa atitude continua sendo apelativa e paternalista.
O português é a única língua comum a todos os povos de Moçambique e que transporta a idéia de nação. Ou se abandona o projeto de construção de uma nação, ou temos que assumir o português como uma questão que nos diz respeito, sem ter que pedir a alguém que nos apóie.
Folha - Existem literaturas nas outras línguas do país?
Couto - Infelizmente não existem. Essa é a minha grande preocupação linguística.
O português de Moçambique vai continuar existindo como uma vertente da língua portuguesa, assim como vocês criaram no Brasil o seu próprio português. Preocupa-me sim que algumas línguas moçambicanas de raiz africana não estejam sendo fixadas. Nem sequer existem normas ortográficas para esses escritos.
Entre os escritores de Moçambique, só há um, Bento Sitoi, que escreve na língua changane, do sul do país. Mesmo ele, para ter difusão nacional, tem que traduzir para o português.
Folha - Como a literatura brasileira tem chegado a Moçambique?
Couto - Não chega, pura e simplesmente. Antes da independência, havia uma influência muito grande da literatura brasileira, muito mais que da portuguesa, sobre nossos autores.
A geração que hoje está nos 60 ou 70 anos, na qual se destaca o José Craveirinha, ganhador do Prêmio Camões, foi muito marcada por autores como Drummond.
Eu mesmo fui muito educado por poetas como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.

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