São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Fome de solidariedade

JOSIAS DE SOUZA

São Paulo - A maior fatalidade da era pós-industrial é a fome. Pode-se objetar que a fome sempre existiu. Sim, de acordo. A fome é mesmo antiga como o tempo. Mas ela não comove mais, eis a novidade. O mundo tem solidariedades mais urgentes.
A ONU acaba de divulgar relatório sobre pobreza. Contaram-se 840 milhões de pessoas subnutridas no mundo -160 milhões são crianças. Há 50 anos, 2,3 bilhões de seres humanos dividiam a Terra sob o sol. Havia 400 milhões de pobres (17,3% do total). Hoje, somos 5,7 bilhões. Há 1,3 bilhão de pobres (22,8%); pessoas que sobrevivem (!) com menos de US$ 1 por dia.
Fez-se em torno dos dados da ONU um silêncio vil. A fome continuou adormecida nas curvas do intestino de quem a sente. O mundo tem solidariedades mais urgentes. Como ter olhos para tripas vazias se o baht, a moeda da Tailândia, continua sujeito a ataques especulativos? Como?
O Instituto Internacional para Estudos Estratégicos, de Londres, também acaba de divulgar estudo sobre gastos com armas no mundo. Em 95, o comércio de armamentos movimentava US$ 36,9 bilhões. Em 96, torraram-se US$ 39,9 bilhões em armas. Com US$ 40 bilhões seria possível, segundo a ONU, levar serviços de saúde, água potável e planejamento familiar aos miseráveis do mundo.
Com outros US$ 40 bilhões se poderia arrancar as famílias miseráveis da penúria. O mundo, porém, tem solidariedades mais urgentes. Como velar pela saúde dos pobres antes que o apetite das três maiores indústrias bélicas do planeta -EUA, Reino Unido e França- esteja saciado? Como?
Ah, a fome dos dias que correm empolga menos do que jogo do Fluminense, menos do que partida do Corinthians. As estatísticas estão aí apenas para lembrar que, sob a casca dos mercados pujantes, sobrevive o mesmo mundão sujo, podre e vergonhoso de sempre. Um mundão que come lucro e arrota insensatez. Um mundão faminto de solidariedade.

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