São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Amizade e interesse

JOSÉ SERRA

Como atestam as sondagens de opinião pública, a visita do presidente Bill Clinton recebeu uma acolhida bastante favorável entre os brasileiros. Admiraram-se sua humildade e sua jovialidade (embaixada com Pelé, tamborim e boné da mangueira), além de comemorar-se a menção positiva que fez ao Mercosul: "Uma coisa boa para a estabilidade, para o crescimento e para a região. O Mercosul é bom também para os Estados Unidos".
Mas em que pé ficou a criação da Área de Livre Comércio das Américas, a Alca? Afinal, esse foi considerado o grande objetivo da viagem de Clinton à América do Sul, ao menos do ponto de vista dos Estados Unidos. Aparentemente, pouco avançou-se nesse campo. Para o presidente norte-americano, o Brasil reiterou claramente sua posição: "Não temos pressa". Junto à imprensa, o governo brasileiro foi mais desinibido: "A Alca não tem prioridade, não a queremos, preferimos discutir mais sobre mais liberalização comercial no âmbito da Organização Mundial do Comércio, a OMC".
É interessante notar, porém, que a principal barreira à Alca não tem sido o Brasil, apesar da posição contrária do nosso governo. Sozinhos, não teríamos força para segurar os demais países latino-americanos, talvez nem mesmo alguns parceiros do Mercosul. O grande obstáculo situa-se nos Estados Unidos, embora Clinton tenha empunhado com vigor a bandeira da integração das Américas. O Congresso norte-americano -que, ao contrário do brasileiro, tem voz e voto em matéria de comércio- resiste a acordos desse tipo, fundamentalmente negando-se a delegar ao Executivo competência para negociar de forma rápida ("fast track") acordos comerciais com outros países.
O próprio projeto de lei que o governo Clinton mandou ao Congresso contraria razoavelmente os pontos de vista dos brasileiros. Preconiza, por exemplo, que as negociações se encerrarão no ano da Odisséia no Espaço, ou seja 2001. Continuar as negociações depois disso, só com nova autorização.
O projeto de Clinton prevê também que as tarifas superiores a 5% sejam cortadas pela metade. Mesmo nesse caso, de que adiantaria, por exemplo, reduzir de 86% para 43% as alíquotas que incidem hoje sobre o preço final da laranja brasileira exportada para os Estados Unidos?
Além disso, a mensagem da Casa Branca não menciona blocos regionais e sublinha explicitamente a prioridade do acordo com o Chile, presumivelmente nos moldes do Nafta. Esse é outro indicador de que o governo norte-americano pensa construir a Alca mediante sucessivas negociações bilaterais com os países do continente, em vez de fazer acertos com blocos e mediante um "pacote" final -isso é o contrário do que deseja o nosso país, que procura aumentar seu cacife negociador. Aliás, é exatamente para reforçar esse cacife que o Brasil vem fazendo concessões a seus sócios do Mercosul, com vistas a mantê-los coesos.
Quem acompanha mais de perto a história dos Estados Unidos não se surpreenderá com a orientação objetiva da política externa desse país, que sabe distinguir, como nenhum outro, amizades e interesses. Uma distinção, aliás, cuja presença crescente não ficaria mal na formulação e sobretudo na prática da política externa brasileira.

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