São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Um país em estado de graça

LUCAS MOREIRA NEVES

"Estado de graça" é uma expressão tipicamente católica, de uso corrente em todos os níveis e segmentos da igreja, no âmbito da teologia e da espiritualidade. Ela não parece ter a mesma difusão em outras igrejas cristãs, embora aí tenha um significado pleno.
A expressão designa uma situação interior toda espiritual do cristão. A de quem, pela ascese, sustentado pelas ajudas de Deus, especialmente pelos sacramentos do batismo e da penitência e reconciliação, à luz da fé, sente-se em paz e comunhão com Deus.
Daí a serenidade e a alegria, a confiança e a segurança, uma certa pureza, quase inocência, serem componentes naturais do estado de graça.
Ele acrescenta à dimensão teológico-espiritual um aspecto psicológico ou psicossocial. Nesse sentido mais amplo, uma pessoa e um povo podem encontrar-se em estado de graça.
Só encontro essa expressão para definir a atmosfera que tomou conta do Rio de Janeiro e, até certo ponto, do Brasil inteiro durante as 75 horas que João Paulo 2º passou entre nós.
A primeira causa do estado de graça situa-se no plano da fé. Uma multidão de milhões de católicos, no Rio e no país, mesmo se na vida ordinária não se comportam como tais e estão até um pouco afastados da vida da igreja, de repente, sabendo que o papa estava ali, podendo ser visto, ouvido, até tocado, tomam consciência da função e da missão dele à luz da fé cristã e católica.
Ele é o sucessor de Pedro como bispo de Roma, é Pedro redivivo e atualizado. João Paulo 2º bem poderia dizer o que Paulo 6º ousou dizer em Genebra, diante do Conselho Mundial das Igrejas: "Meu nome é Pedro!".
De fato, o papa é investido do carisma do apóstolo ao qual Jesus Cristo confiou a tarefa de estar à frente do Colégio Apostólico e presidi-lo, de apascentar todas as ovelhas, falar em nome delas e consolidá-las na sua fé: "tu, confirma os teus irmãos" (Lucas 22, 32).
Ele é o vigário visível de Cristo. É o pastor universal da igreja do mesmo Cristo. É o mestre nas questões da fé e da moral e goza do privilégio de infalibilidade quando se pronuncia sobre tais questões "ex cathedra", isto é, usando da autoridade espiritual conferida por Cristo, no Espírito Santo, para a edificação da igreja. Essa tomada de consciência gerou espontaneamente um senso de respeito e amor para com a pessoa detentora de tão alto carisma.
Uma segunda causa do estado de graça prende-se à personalidade singular de Karol Wojtyla/João Paulo 2º. Os muitos dotes humanos, de inteligência e coração, espírito e sensibilidade e, sobretudo, de comunicação e simpatia, unidos a virtudes cristãs e evangélicas de fé inabalável, esperança e amor, compaixão e misericórdia, profunda comunhão com Deus, virtudes harmoniosas entre si e equilibradas no todo, fazem deste papa alguém excepcional.
Dele se irradiam -a partir de sua simples presença, de um gesto ou uma palavra, de um apelo dramático ou um gracejo- uma aura toda espiritual, uma paz contagiante, uma tranquilidade interior. Sentimentos altos e nobres que se impõem aos outros, negativos e destruidores.
Foi isso o que, estando na comitiva do papa e passando com ele pelas ruas, ou estando com ele em vários ambientes, eu pude perceber em milhares de pessoas. Vi muitos sorrisos, vibrações e lágrimas. Tudo, porém, de absoluta paz. Creio que esta se impregnou também nos políticos, nos policiais militares e civis, nos artistas e nos comunicadores sociais tanto quanto nos bispos, padres, diáconos, seminaristas, freiras e fiéis de todas as categorias.
Foram esses sentimentos, indescritíveis na sua real profundidade, que terão determinado um dos fatos que mais me deslumbraram.
O papa se despedira longamente do altar do aterro do Flamengo e se retirara. Mas centenas de milhares de pessoas ficaram ali onde estavam, os olhos na cátedra onde o santo padre se sentara, como que seguros ali por uma improvável possibilidade de que ele voltasse. Ou movidos pelo inconformismo, porque passara rápido demais o tempo da presença.
Nesse sentido, só foram mais eloquentes as cálidas e abundantes lágrimas das crianças na Base Aérea, cantando e chorando, enquanto o papa subia as escadas do MD-11 da Varig.
A imagem do ancião combalido, trôpego e trêmulo, longe de impedir, aumentou a irradiação da paz e da bondade. Que o estado de graça persevere e seja duradouro é o único desejo que, em oração, deposito nas mãos de Deus.

D. Lucas Moreira Neves, 72, é cardeal-arcebispo de Salvador (BA), primaz do Brasil e presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos no Brasil). Foi vice-presidente do Conselho Pontifício para os Leigos (1974-79), secretário da Congregação para os Bispos e do Colégio Cardinalício (1979-87), órgãos sediados no Vaticano.

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