São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 1997
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Cruzeiro revela os dois lados de Chicago

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
ENVIADO ESPECIAL A CHICAGO

São 9h, e o céu começa a clarear, mostrando um azul profundo de final de verão. Apesar do tempo bom num sábado, as águas do Chicago River estão pouco movimentadas. Alguns veleiros e barcos de turismo navegam por ali.
Embarcamos num píer logo abaixo da Michigan Avenue, a mais badalada da cidade. É ali, na ponte sobre o rio, que começa a chamada Magnificent Mile, o trecho que reúne os mais caros hotéis e lojas de Chicago.
As fachadas variam em função da época: há desde a torre em estilo gótico do "Chicago Tribune" (o mais tradicional jornal da cidade) até edifícios modernos, cujas faces envidraçadas refletem as águas verdes do Chicago River.
O rio é a origem e a razão de ser da "capital" do Meio-Oeste. Foi em 1830, na embocadura do lago Michigan, que a primeira construção civil do que viria a ser Chicago foi erguida. Hoje, o que era a foz do rio tornou-se uma comporta, indispensável para vencer o desnível em relação ao lago.
Quando ela é aberta, uma pequena cascata inunda o compartimento onde estão os barcos, elevando-os cerca de um metro.
No século passado, o movimento das águas era no sentido oposto. Para facilitar a navegação nas hidrovias naturais e nos canais construídos, o curso do Chicago foi invertido. Atualmente, ele corre do lago para o vale do Mississippi.
Navegação é a palavra-chave para entender Chicago e sua importância econômica. Navegar por seus rios e canais é o melhor meio de conhecer a cidade, sua história e a posição estratégica na qual ela está.
Divisor de águas
Chicago é, a um só tempo, divisor de águas e elo de ligação entre a bacia do Mississippi e os grandes lagos. É o porto de passagem entre os principais complexos de navegação e transporte dos EUA.
A oeste está o Mississippi, rio que corta de norte a sul a mais importante região agrícola norte-americana e vai desembocar no golfo do México.
A leste ficam os lagos, canais e rios que servem de caminho até Nova York e o oceano Atlântico e que abrigam os principais centros industriais dos EUA.
Em ambos os sentidos, passam barcaças carregadas de soja, carvão, produtos industrializados, sal e uma infinidade de outros itens, que têm assim seu custo final diminuído pelo transporte mais barato do que o rodoviário.
Vencendo-se algumas milhas pelo lago Michigan em direção ao sul, o barco entra num canal artificial. A paisagem muda drasticamente. Saem os edifícios arrojados e aparecem armazéns, portos, silos, pilhas de todos os tipos de material e até um aterro sanitário.
Se a paisagem não chega a ser propriamente bonita, a jornada compensa pela curiosidade e pela possibilidade de ver lugares que raramente entram no roteiro de um turista.
Organizado pelo professor David Soltman, da Universidade de Chicago, o passeio reúne mais moradores da cidade do que viajantes de outras partes.
Em comum, o canal e o rio Chicago têm as pontes. Ao final do trajeto de sete horas e meia, o barco passa por uma centena delas. Há de todos os tipos: ferroviárias, rodoviárias, de ferro fundido, de concreto, pênseis.
As que mais chamam a atenção têm duas torres de cada lado. Quando há necessidade de um barco maior passar sob seu vão, a seção central é erguida.
Prateleiras náuticas
O tráfego aquático é intenso. Além do grande transporte de mercadorias, os habitantes de Chicago estão entre os maiores possuidores de barcos nos EUA.
Há uma marina em cada curva do canal e do rio. São tantas lanchas e iates que alguns são empilhados por guindastes em verdadeiras prateleiras náuticas.
A paixão de Chicago pela água aparece também nas margens do lago Michigan. Há praias de areia, lotadas no verão, a menos de cem metros dos endereços mais chiques da cidade.
Nelas e em sua volta, os moradores correm, andam de bicicleta, nadam, deslizam sobre patins "in line" e jogam vôlei nas quadras montadas na areia. Numa delas, há uma rede com a bandeira brasileira hasteada.
É na Lake Shore Drive, via expressa que margeia o lago, que estão os mais valorizados prédios residenciais da cidade. São lugares onde moram, por exemplo, astros como o tricampeão na NBA (liga profissional de basquete dos EUA) Scottie Pippen.
Nos melhores pontos, a vista desses apartamentos abrange o lago, a praia, a melhor marina da cidade, o Lincoln Park e até um zoológico. Mas essas atrações não duram o ano todo.
Lazer congelado
Durante o inverno, a paisagem é tomada pela neve, e as opções de lazer ao ar livre dos moradores são literalmente congeladas. Além da baixa temperatura, o vento, que sopra incessantemente, aumenta a sensação de frio.
Ele é tão marcante que provoca polêmica. O apelido de Chicago é "Windy City" (algo como cidade ventosa ou tempestuosa). Alguns creditam o nome ao vento, outros, a discursos fervorosos de políticos do século passado.
Polêmica à parte, durante os quatro meses de inverno os moradores de Chicago evitam sair à rua.
A região central de Chicago é conhecida como Loop. Isso porque o trem urbano, erguido em trilhos suspensos, faz um círculo em torno das ruas centrais.
É a região mais agitada da cidade durante o dia, onde está a Bolsa de Mercadorias, a maior do gênero do mundo. É lá que é ditado o preço mundial da soja, por exemplo.
População
O papel de Chicago como entreposto comercial da produção agrícola norte-americana é revelado pelo perfil de seus habitantes.
Apesar de oferecer quase tantas e tão sofisticadas opções de consumo quanto Nova York, Chicago tem uma população muito menos "internacionalizada" do que a maior cidade norte-americana.
Em alguns momentos, Chicago chega a lembrar uma cidade do interior. Uma grande cidade do interior, a maior dos EUA, mas ainda uma cidade do interior.
O ritmo das pessoas -a maioria de pele clara, bochechas vermelhas e um pouco acima do peso- é incomparavelmente mais lento do que em Nova York. O trânsito é menos brutal. E, diferentemente de Nova York, é comum encontrar taxistas que falam inglês.
Formada por imigrantes de várias partes dos EUA e da Europa, que fizeram a população local aumentar 30 vezes em cem anos, Chicago hoje está perdendo moradores. Há menos pessoas na cidade hoje do que há dez anos.
Ao mesmo tempo, crescem as cidades periféricas, os subúrbios, que, diferentemente dos brasileiros, oferecem melhores condições de vida a seus moradores do que a "capital" do Meio-Oeste.
Para conter o fluxo migratório, a prefeitura está desenvolvendo um bem-sucedido plano de reurbanização do centro. Prédios estão sendo demolidos ou reformados. Antigos galpões estão sendo transformados em "lofts" confortáveis.
Para o turismo, a reurbanização também rende frutos. A cidade é limpa, e a quantidade de esculturas nas ruas, inclusive uma de Picasso, transforma o centro de Chicago em um museu ao ar livre.
Reerguida a partir de um incêndio que destruiu quase metade da cidade no final do século passado, Chicago está acostumada a reformas. Sem perder sua ligação fundamental com a água, a cidade está se transformando de novo.
E para melhor.

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