São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 1997
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Conspiração

MOACYR SCLIAR

Quando a prefeita anunciou que ia pintar edifícios públicos de cor-de-rosa, eles resmungaram, mas aceitaram; afinal, ela tinha sido eleita e estava dentro de suas atribuições decidir a cor dos próprios municipais. Mas quando a primeira mandatária propôs-se a distribuir cuecas cor-de-rosa aos cidadãos, eles acharam que todo limite tinha sido ultrapassado. Reuniram-se, um grupo dos autodenominados resistentes, e decidiram organizar-se para resistir ao que denominavam de autocracia rosada: o movimento seria secreto e teria o nome de Frente de Libertação Cuecas Negras, FLCN. Todo membro do grupo comprometia-se a usar cuecas desta cor. Para que as esposas não desconfiassem, as cuecas ficariam guardadas na sede da FLCN, que funcionaria na casa de um deles, providencialmente solteirão.
Reuniram-se várias vezes, organizando um amplo programa de sabotagem, que consistia especialmente em usar spray preto nos edifícios já pintados de cor-de-rosa. O entusiasmo crescia, mas havia um problema: o grupo ainda era pequeno. Por isso, eles receberam com satisfação a notícia de que havia um novo candidato à FLCN. Tratava-se de um rapazinho magro e quieto, de olhar languido. Veio a várias reuniões, mas estranhamente não falava nada; nem mesmo o juramento de fidelidade quis prestar. Finalmente, o chefe da FLCN, um comerciante chamado Joaquim, desconfiou. Em plena reunião, anunciou:
- Companheiros, tenho fortes razões para suspeitar que há um traidor entre nós.
Apontou o dedo acusador para o rapaz:
- Aquele ali!
Agarraram-no, despiram-no, e constataram: por baixo das cuecas pretas, havia outras, cor-de-rosa.
O que foi o fim do movimento. Porque o dono da casa, aquele solteirão, ficou fascinado com o rapaz das cuecas cor-de-rosa. Hoje moram juntos. A Frente de Libertação Cuecas Negras, sem lugar para se reunir, acabou se dissolvendo. E os seus membros estão começando a achar que cor-de-rosa não é uma cor tão feia assim.

O escritor Moacyr Scliar escreve, nesta coluna, às quintas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

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