São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 1997
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Quem tem medo do contrato de gestão?

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Em recentes discussões no Congresso sobre a reforma da administração, a simples menção do termo "contrato de gestão" desencadeava paroxismos de fúria corporativista. Satanismo, escravidão, fascismo eram as avaliações. Pois bem, no "Diário Oficial" de 10 de outubro publicou-se a extinção do Laboratório Nacional de Luz Sincrotron e a criação da organização social que deverá assumir suas funções, por meio de contrato de gestão. O demônio está solto. Só nos resta exorcizá-lo.
O primeiro fato surpreendente, todavia, é que o conselho diretor, a diretoria, o corpo interno de pesquisadores, o conjunto de técnicos e os funcionários -em sua unanimidade- são favoráveis ao contrato de gestão. Estão, por certo, possuídos pelo coisa-ruim.
Mas vejamos o que é um contrato de gestão. Em resumo, a sociedade identifica uma necessidade própria; um grupo interessado em realizar essa tarefa cria, então, uma entidade jurídica específica, sem fins lucrativos. Negocia-se um contrato para realização parcial ou integral da tarefa em questão. Objetivos previamente estabelecidos são analisados a cada etapa prevista. Não há continuidade do contrato se uma das partes não estiver satisfeita ou se se mostrar incapaz de efetuar seus compromissos.
No Brasil, há uma crença perversa segundo a qual as instituições de pesquisas têm uma vida útil de dez anos. Depois decaem. De fato, o que tem ocorrido é que as instituições brasileiras de pesquisas são criadas por iniciativa de indivíduos ou grupos cujos apogeus duraram, aproximadamente, dez anos.
Durante esse período "nascente", a burocracia é pequena ou é violada. O entusiasmo dos dirigentes determina as ações. Há inseguranças porque não houve institucionalização. Institucionalização é burocratização. Mas, em compensação, há liberdade para criar, para improvisar, para ousar.
Burocracia é como artrose: leva as instituições à cadeira de rodas. Com ela vem uma doença ainda pior, o corporativismo, que é um Alzheimer precoce. Infelizmente, não mata; transforma a instituição em um peso morto para a sociedade, inútil, vegetativo.
É própria da natureza, e saudável para a sociedade, a extinção da espécie que se torna parasita. Em princípio, o contrato de gestão evitaria frequentemente esse sacrifício, pois exigiria contínua renovação da instituição, evitando a burocratização e o corporativismo. Claro que a permanente atividade, o estado de alerta, a necessidade de sobrevivência e a relativa insegurança são desconfortáveis. Mas pesquisadores que priorizam a busca do próprio conforto são inúteis e não deveriam ser sustentados pela sociedade.
Por outro lado, é bom notar que o contrato de gestão não é tão novo assim no Brasil. Duas das melhores instituições de pesquisas e ensino do Rio de Janeiro -sem perceber, talvez- viveram e floresceram sob a égide de contratos com a Finep não muito diferentes dos de gestão. E essa foi a principal razão pela qual se tornaram dois dos melhores centros de pesquisas do Brasil. Refiro-me à Coppe (coordenação de pós-graduação da Universidade Federal do Rio) e à PUC (Pontifícia Universidade Católica do Rio). Ou seja, vieram a ser centros de excelência porque não tinham recursos assegurados para pessoal e para equipamentos.
Quando a Unicamp foi iniciada, foi um custo convencer os "antigos" de que seria um erro dispor a universidade de recursos próprios para pesquisas.
O pesquisador, o grupo, o departamento que não conseguem em agências governamentais recursos para equipamentos, material de consumo, estágios, viagens para conferências etc. não merecem gastar esses dinheiros. A universidade não tem discriminação para distribuir entre seus próprios membros tais benefícios. Geralmente, torna-se uma distribuição de favores. Um arranjo político, que promove e fortalece o corporativismo, a mediocridade.
O gestor de um contrato sabe que o mau aproveitamento dos recursos irá interromper o programa. Seus pares também estarão atentos. A todos interessa a eficácia, a qualidade. Cada um zelará para que os demais façam sua obrigação.
No serviço público é o contrário. O que cada um precisa é que haja outro um pouco pior. Estão todos protegidos se ninguém fizer muito. É assim que, em muitas universidades públicas brasileiras, há docentes em tempo integral, com dedicação exclusiva, que relutam em comparecer uma vez por mês para conversar com seus alunos. Esses têm medo do contrato de gestão.
Também há aqueles que, incapacitados pelo tempo já perdido, fossilizados, acabam por se agregar em sólidas corporações politizadas, ostentando principalmente sua condição de incapacitados para a competição no mercado de trabalho como bandeira social. É preciso separar o joio do trigo. Então, quem tem medo do contrato de gestão?
Aliás, é bom dizer que também o hospital Sarah Kubitschek opera com um contrato de gestão. Talvez esse mecanismo não seja a solução para muitas das instituições públicas brasileiras. Seria difícil elaborar um contrato de gestão para as Forças Armadas sem nenhuma guerrinha à vista. Mas certamente seria adequado a muitos setores, como o da saúde, o universitário, as demais instituições de pesquisas e outros. E poderíamos até pensar no Congresso.
Todavia, o que garante o sucesso desse contrato é a nítida separação entre contratado e contratante. Não pode haver "incesto". Os gestores não podem pertencer aos quadros do contratante -do governo, portanto. É esse ponto essencial do conceito básico que a burocracia brasiliense não é capaz de entender. É o conflito, a dicotomia entre duas partes nitidamente separadas que garante a seriedade do processo.
Que autoridade terão os contratantes para interromper ou não renovar um programa se compartilham da gestão? Mas a viciada burocracia ainda não conseguiu sobrepujar sua cultura corporativista. Pena. Será uma experiência mutilada; parcial, para dizer o menos.

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