São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 1997
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O "Paraguai" das montadoras

FLÁVIO KOUTZII

Foi-se o tempo em que as empresas precisavam investir e correr riscos para obter lucros. A guerra fiscal sem tréguas está produzindo variantes heterodoxas nas relações econômicas, que violam até algumas leis até então intocáveis.
Na hora de alinhar oferendas e regalias e colocá-las à mesa de potências internacionais, ninguém tira do trono o governador gaúcho Antônio Britto. Ao formular um modelo para a instalação da GM e da Ford no Estado, ele criou um novo tipo de sistema econômico: o capitalismo sem capital e sem risco.
As duas maiores empresas automobilísticas do mundo instalam montadoras em solo gaúcho sem gastar um único centavo. Todo o investimento -construção, infra-estrutura, ruas, portos, capital de giro etc.- é fornecido pelo Estado, com dinheiro das privatizações e recursos orçamentários.
No caso da GM, o governo adiantou R$ 253 milhões, antes que fosse colocado o primeiro tijolo do futuro parque automotivo. Quanto à Ford, como não há mais dinheiro em caixa, foi combinado um financiamento do BNDES no valor de US$ 700 milhões, em que a empresa vai pagar apenas 6% de juro.
A diferença do juro cobrado pelo BNDES, hoje em 14,9%, é de responsabilidade do governo, que, ao fim dos cinco anos de carência, já estará devendo R$ 419 milhões, mais do que o que investiu na saúde pública em três anos.
Nos dois casos, o ressarcimento será feito a perder de vista (dez anos para pagar), com prazos de carência generosos (cinco anos) e juros de mãe para filho (6% ao ano, sem correção). Os contratos são feitos de forma que os riscos de alterações de taxas e prazos são assumidos pelo Poder Público.
Não pensem que é tudo. O governo também vai garantir o capital de giro da GM e da Ford pelos próximos 15 anos, num percentual de 7% a 10% do faturamento. A GM vai faturar US$ 1 bilhão por ano. A Ford não deixará por menos.
Portanto, o Rio Grande do Sul vai ceder, por baixo, US$ 150 milhões anuais, que poderão ser abatidos de impostos ou sacados junto ao Tesouro Nacional. As duas só pagam impostos a partir de 2022, se ainda estiverem por aqui, porque não há nenhum compromisso de permanência após o fim dos benefícios. As empresas fornecedoras terão direito às mesmas benesses.
Outro aspecto que caracteriza a guerra fiscal é a falta de transparência. Até hoje, os termos do acordo entre o governo do Paraná e a Renault são desconhecidos da opinião pública. No Rio Grande do Sul, o governo tentou esconder o conteúdo do negócio com a GM, alegando segredo industrial. O adiantamento de R$ 253 milhões e o termo de compromisso só chegaram ao conhecimento público por denúncia da oposição e decisão judicial.
O marketing do governo Britto auto-elogia a competência para atrair as duas maiores fábricas automobilísticas do mundo que trarão empregos, prosperidade e felicidade eterna aos gaúchos. O governador fez uma graça, dizendo: "Primeiro trouxemos o Ronaldinho e, agora, o Romário".
Pois, mantendo o espírito esportivo, digo que, para trazer os dois, tivemos que vender o resto do time, o estádio e transferir a torcida para o clube rival, tal é o comprometimento do patrimônio, das finanças, dos próximos orçamentos e do futuro do Estado.
Em troca de quê? Existem 19 montadoras de automóveis chegando ao Brasil. Montadoras, não fábricas, pois estamos em plena orgia da globalização. No caso do Rio Grande do Sul, a GM e a Ford importarão peças e até veículos fabricados em qualquer lugar do mundo, onde eles forem mais baratos. Estamos exportando empregos.
A GM já está trazendo as camionetes Silverado fabricadas na Argentina. O governo -quer dizer, o bolso do contribuinte- se encarrega de subsidiar o ICMS.
O número de empregos é pequeno para o "investimento" feito. A GM se compromete a gerar 1.300 postos de trabalho na montadora, mais 2.700 das empresas-satélites e 9.000 empregos indiretos, dos quais metade no Rio Grande do Sul. A Ford é ainda mais modesta: no protocolo de intenções, menciona 1.500 empregos na montadora e nas fornecedoras.
Em troca de não mais que 10 mil empregos na região metropolitana, onde há mais de 200 mil desempregados, o Rio Grande do Sul está se transformando na Zona Franca do setor automobilístico, um "Paraguai" das montadoras, enquanto centenas de indústrias gaúchas fecham as portas.
É um modelo, uma opção preferencial pelo marketing. Uma irresponsabilidade com o futuro.

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