São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 1997
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Ontologia e esboço de antologia do tango

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

No princípio, era o tango. E Carlos Gardel era o seu profeta. Criou-se a Santíssima Trindade portenha, integrada pelo tango, por Gardel e Buenos Aires, que por sinal não era Buenos Aires, mas Ciudad de la Santísima Trinidad y Puerto de Nuestra Señora Santa Maria de Buenos Aires. Sabiamente abreviado pelas agências telegráficas, o nome foi reduzido a apenas Buenos Aires. Sem copidesque, o tango ficaria tango para o resto da vida.
Discutem-se, lá e cá, os problemas do gênero. Até no Brasil houve tangos, por sinal saborosos. Mas o tango-tango é o típico, Gardel, Lepera, Canaro y otros.
Não pretendo cometer uma ontologia do gênero. José Lino Grunewald publicou há pouco um livro sobre o lunfardo, que é mais do que uma gíria mas uma concepção de vida, um estilo de sentir o mundo.
Como dizia Borges, o tango é uma forma de caminhar pela vida. Não sou entendido no assunto, mas sempre me emocionei com a intemporalidade de seus conflitos.
São eles resumidos a um chassi, a uma espinha dorsal que serve para todos.
Para início de conversa, o cara é traído pela mulher, mas paradoxalmente ainda é noivo e tem a madre doente e em extrema penúria. Os filhos da madre são órfãos de padre y madre e passam fome. São os hermanos pequeños do sujeito que, além de filho da madre e noivo, foi antecipadamente traído pela esposa que fugiu com seu melhor amigo. Mas aí entra o padre que é borracho contumaz e, nesse dia, está borrachíssimo para olvidar a hermana da madre que foi sua loca passión de juventud.
O padre borracho, diante da madre e dos filhos órfãos a priori, enforca-se no justo dia do noivado do filho.
Mas a noiva do filho é arrebatada por outro pérfido amigo que, além da mulher e da honra, rouba-lhe a carteira e a saúde.
Em desespero, o sujeito corre ao leito da madre em busca de lenitivo. Numa golfada de sangue, a madre exala o último suspiro. Os hermanos pequeños querem pão, a esposa abandona os filhos na negra miséria e vai dançar seminuda no cabaré.
Enganada por seu raptor, a noiva cai na sarjeta de las calles. O resultado final é impressionante: o cadáver do padre pendurado na porta, balançando ao vento gelado que vem do rio, a madre morta na cama, os hermanos berrando de fome, la novia fazendo a vida na calle e a esposa, seminuda ou nuda a essa altura dos acontecimentos, dançando milongas no cabaré mais escrachado da Boca.
O desgraçado não tem sequer aquele remédio que Manuel Bandeira receitou para os tuberculosos desenganados: "A única coisa a fazer é tocar um tango argentino". Ele já o está tocando.
Não adianta meter bossa nova, tropicália ou tchan no tango. Astor Piazzola tentou. Era músico sério, criou outra coisa, não penetrou na essência e na legitimidade do gênero, que é impermeável em música e letra, mas sobretudo em espírito.
Qual seria a razão da idolatria com que se venera Gardel naquelas plagas?
Talvez seja o fato de Gardel e o tango se identificarem com o período áureo da grande cidade, quando seu status de metrópole européia, seu gosto civilizado, seu metrô de poltronas de couro, a calle Florida e os bosques de Palermo eram cantados em prosa e verso pelo mundo inteiro.
As vacas gordas passaram. Mas a lembrança foi perpetuada na voz de Gardel. Seu repertório até hoje tem a grandeza de uma lamentação bíblica, evocando o esplendor e a grandeza daquela babilônia platense, predileta dos deuses e amada pelos homens. O "gato de porcelana" que comparece num dos chamados "tangos imortais" é um ícone e, ao mesmo tempo, uma relíquia da Sião sul-americana.
Apesar da predileção dos deuses e da adoração dos homens, Gardel não nasceu na Argentina -segundo provam documentos encontrados na paróquia de um dos departamentos do Uruguai -por falar nisso, Carmem Miranda também não nasceu no Rio, mas em Portugal.
Matos Rodriguez, autor do tango dos tangos, era uruguaio e morreu pobre num apartamento do Palácio Salvo, em Montevidéu.
A propósito, outra glória de Buenos Aires, o jóquei Irineo Leguisamo, celebrado num tango de Gardel, também era uruguaio.
Por tudo isso, viva o samba, esse sim natural daqui do Rio de Janeiro, segundo Zé Ketti. Mais plástico e polivalente do que o tango em música e letra, o samba ainda não gerou um emblema, um logotipo equivalente a Gardel.
Nem só a dor de corno é cantada em samba, embora muitos deles, antológicos, tenham como ponto de partida o abandono, a traição, a "consequência inevitável de você".
Carestia da vida, trem atrasado, teto de zinco salpicando de estrelas o nosso chão, problemas sociais, morais e religiosos (pedreiro Valdemar, mulher sem compostura, ave-maria no morro), qualquer assunto que dê sopa e o samba logo incorpora. Jamais os argentinos fariam um tango sobre dentaduras e sobre a âncora cambial. É só esperar pela próxima campanha eleitoral que chegaremos lá.

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