São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 1997 |
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Poeta compôs seu mundo natural ao longo da vida
JOSÉ MARIA CANÇADO
Esse museu natural meio expressionista que, sem sair do seu escritório, o botânico e zoólogo do ar Carlos Drummond de Andrade andou estampando intermitentemente nos seus livros, foi o que, de alguma maneira, o salvou da esplêndida condenação que há na sua poesia: a sua fidelidade sacrificante a si mesmo e a sua auto-exploração nunca saciada, que faziam com que Otto Lara Resende dissesse que "Drummond comeu o próprio fígado a vida inteira". Esse motivo do museu natural o distraía disso. Ele sugeriu numa entrevista que motivo era esse: disse que ficava fascinado com o sentimento de que não há uma hierarquia na ordem dos seres vivos, mas que tudo o que vive parece disposto numa perturbadora horizontalidade. Uma espécie de vitalismo sutil, que ele reconhecia na obra de Bergson (e que o deixou, por exemplo, interessadíssimo quando Jayme Ovalle lhe disse que tinha atração por pombas). Embora faça a sua aparição em quase toda a obra de Drummond, é afortunadamente nos últimos livros do poeta que o tema surge de forma mais desimpedida. É a essa fase que pertence toda essa suíte de poemas inspirados na Mata Atlântica e na sua extinção, melhor, na sua "remotização". Uma fase na qual a poesia de Drummond surge, por assim dizer, centrifugada, mais desatrelada do centro ordenador, do "eu todo retorcido" (a expressão é do poeta) que sempre a presidiu, e multiplica e horizontaliza seus dons em objetos de vários tipos, em temas mais ou menos circunstanciais e numa variedade impressionante e quase despersonalizada de formas poéticas, de métricas, de ritmos. Quase como se essa poesia tivesse se descanonizado diante de si mesma. Uma descanonização talvez tão profunda a ponto de quase superar o conflito entre inspiração e solicitação vinda de fora, entre eleição pessoal e sugestão de um tema. Assim foi com os poemas de "Mata Atlântica". Seja como for, essa despersonalização medida, essa assinatura de Drummond tornada mais volátil diante das inúmeras e quase extintas formas de vida na Mata Atlântica, se chegam a apagar um pouco o seu rosto e a sua "firma", criam uma súbita compatibilidade entre o poeta e o mundo que vê desaparecer. Não é só Drummond o que há aqui. É Drummond mais a Mata Atlântica. Assim, quando ele invoca o gavião-penacho, é de tal forma admirada e reverente a celebração dos atributos do animal ("Meu rei áureo da mata/Meu rapinante invencível,/De hálux certeiro e cruel..."), que é também como se ele se sentisse invocado pela nobreza do animal. Ou a forma com que sugere quase comicamente a sua extrema compreensão diante da natureza e os embaraços do xaxim ("Xaxim, teu nome raro não te deixa/Arborescer no mato em flor./És enfeite doméstico. Nos lares,/Mulheres maltratam com amor".). Ou o pano muito rápido jogado sobre a desaparição da Jacupemba ("Jacupemba, perseguida jacupemba/De tua sorte quem se lembra?"). Não é tanto que o sonho ou o motivo do museu natural distraísse Drummond da condenação a si mesmo. Paralelo de uma forma quase arisca a um outro motivo da sua poesia -o da paixão amorosa-, que também o salvou, ele era, majestoso, mais do que isso. Era uma leve libertação. E que se dava por meio de uma, por assim dizer, mútua adoção entre o poeta e um certo mundo natural, um invocando o outro. No caso da "Mata Atlântica", praticamente extinta, essa mútua adoção também já trazia quase todo o desvalimento do mundo. Mas não deixa de prefigurar um outro jeito de viver no planeta. O escritor José Maria Cançado é autor de "Os Sapatos de Orfeu - Biografia de Carlos Drummond de Andrade" Texto Anterior: Drumond explora a Mata Índice |
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