São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 1997
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Um quê, dois poréns

JOSÉ SARNEY

Um grande passo para uma sociedade solidária foi a criação do Estado de Bem-Estar Social. Quando o comunismo ameaçou o capitalismo, este reagiu e mostrou que era capaz de assegurar as aspirações utópicas do marxismo por meio de um Estado democrático que garantisse ao trabalho remuneração adequada, justiça social, saúde, educação. Com o fim da ameaça comunista, foi-se o medo e a grande investida atual é estabelecer, a nível global, uma política de destruição do Estado do Bem-Estar, o Welfare State.
Não sei quantos anos vai durar essa onda neoliberal, mas posso dizer que ela não é o ideal maior do gênero humano. A economia de mercado, tal como o marxismo, está se tornando dogmática e isso é o princípio do fim. Veja-se a irracionalidade do tratamento injusto e ignóbil dado à saúde. Foi preciso muito tempo para que incluíssemos a saúde como direito do cidadão; hoje é uma simples mercadoria.
O Banco Mundial, no seu último relatório sobre o desenvolvimento humano, recomenda que os governos devem investir menos no sistema público de saúde, pois esta deve ser entregue à iniciativa privada.
A recomendação para colocar essa "mercadoria" dentro do mercado é brutal. Abandonou-se, por completo, a idéia do bem-estar social, para predominar a idéia da oportunidade de lucro. Sucateia-se a rede pública de saúde e se vende a ilusória perspectiva de obter saúde e proteção por meio dos planos de capitalização. O mercado brasileiro é de R$ 18 bilhões e, se o sistema público chegar à falência, será, dentro de três anos, de R$ 60 bilhões, capaz de seduzir qualquer um. De onde sai esse dinheiro? Do bolso dos "consumidores". Não é saúde a preocupação, é o negócio saúde.
Esses planos têm várias armadilhas embutidas: 1) o barato, para tratamento ambulatorial, sem internação nem hospitalização; 2) o menos caro, referencial, que cobre ambulatório, consulta e internação, mas exclui próteses, inclusive as stentes, para operações cardíacas; 3) o plano caro, que cobre todos os níveis, com uma lista de doenças que consta do contrato e que pode não ser aquela que o "consumidor" tem. Sempre fica uma porta aberta, o pulo do gato, onde o doente, perdão, o consumidor, é postergado.
Mas ainda existe outro risco maior, que deve ser do conhecimento de todos. Os planos de capitalização somente serão solventes se o dinheiro aplicado por eles der lucro, isto é, eles dependem do mercado financeiro. Assim, os planos de saúde, como os de previdência, tornam os "consumidores" reféns do mercado financeiro.
A saúde pública, a solução que sempre foi um sonho de uma sociedade justa, desapareceu. A CPMF está desfinanciando a saúde. Ela apenas serviu para desviar recursos do setor que entram e saem pelas brechas orçamentárias. É esse caos. A saúde pública não pode, jamais, ser assunto de negócio privado.
Os planos de saúde, com todas as vantagens que apregoam, me fazem lembrar outro provérbio do Nordeste: "Tem um quê, com dois poréns".

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