São Paulo, sábado, 25 de outubro de 1997
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O enterro da revolução

RUBENS RICUPERO

O enterro de Ernesto Guevara, nas circunstâncias históricas em que ocorre, provoca uma pergunta irresistível: não se tratará do enterro da própria idéia de revolução?
Trinta anos atrás, quando ele foi morto na Bolívia, o slogan que havia proposto à Tricontinental ainda soava plausível: Dois, Três, Muitos Vietnãs! A União Soviética de Brejnev parecia no apogeu do seu poder. A China de Mao, nas convulsões da Revolução Cultural, encarnava a revolução levada ao paroxismo.
Não se deveria talvez ter esperado tanto para prestar as últimas honras ao guerrilheiro caído. Compreende-se que tenham querido em Cuba reacender a velha chama numa hora de crise e questionamento. Mas, à véspera do oitavo aniversário da queda do Muro de Berlim, o valor simbólico do gesto escapa ao controle de seus autores.
Um exemplo pertinente é o dos próprios militares bolivianos. Quiseram, com a fotografia de Guevara vencido, consolidar seu triunfo. Fizeram o contrário. A foto de Che, magicamente transfigurado no Cristo da deposição da cruz, se apropriou da imagem mais poderosa em 2.000 anos de história ocidental. Em seu ensaio sobre a fotografia, Susan Sontag a comparou ao Cristo morto, de Mantegna.
Desta vez, temo que o efeito seja o oposto. Em lugar de sugerir a iminente ressurreição, o sepulcro pode assumir ares das pirâmides funerárias que simbolizam civilizações congeladas.
Tão acostumados de fato estamos com a frequência do fenômeno revolucionário que esquecemos seu caráter relativamente recente. Parafraseando Saint Just, podemos dizer que, tal como a felicidade, a idéia de revolução é nova no Ocidente.
Ela data, no fundo, dos últimos 200 anos, da Revolução Francesa, para ser preciso. Antes, era um crime de lesa-majestade. Sua exaltação como auge do heroísmo coletivo, como maravilhosa explosão de energia libertadora, vem do Iluminismo. Jefferson, por exemplo, dizia que a frágil planta da liberdade só poderia vingar se regada, de tempos em tempos, com o sangue dos tiranos!
A partir da tomada da Bastilha, a esperança da revolução passou a saciar a sede de absoluto de uma civilização que perdera a fé nas igrejas aliadas ao poder. A história do século 19 foi uma permanente tentativa, sempre frustrada, de repetir o sucesso de 1789, levando à cena o enredo da revolução interrompida. As explosões de 1830, de 1848, são etapas de uma história exaltante e trágica que se fecha definitivamente na Europa Ocidental com a repressão sangrenta da Comuna de Paris.
A magia da revolução provinha, em parte, do seu caráter de projeto nunca inteiramente realizado. Seu herói-símbolo foi Garibaldi, que lembra Guevara em mais de um ponto: no radicalismo, no internacionalismo, na recusa do compromisso, no desapego ao poder, no talento de chefe de guerrilha. O "herói dos dois mundos" também estava permanentemente disponível para o sacrifício pelas causas perdidas, para ser invariavelmente traído pelos homens do poder.
Quando afinal chega o triunfo com os bolcheviques, a revolução começa a ser vítima do próprio sucesso. É um paradoxo estranho que muito mais tenha ficado da Revolução Francesa do que da Russa, apesar de a primeira só ter exercido o pleno poder fugazmente, enquanto a segunda dispôs de poderes absolutos por 70 anos. Passo a passo, a cada tentativa derrotada de reeditar 1789, seus ideais foram abrindo caminho subterraneamente: soberania popular, democracia, direitos humanos, nacionalismo. O programa dos jacobinos se esgota pela aceitação universal. Já o saldo dos marxistas-leninistas evoca outra imagem: a da revolução que poderia ter sido e que não foi.
Pode-se fazer um paralelo com o cristianismo, que, depois de virar religião oficial do Império Romano, nunca mais foi capaz, apesar de santos como Francisco de Assis, de recuperar a vitalidade das catacumbas e dos tempos em que os fieis punham todos os bens em comum.
O resultado é que, pela primeira vez em dois séculos, nos descobrimos órfãos de um grande projeto revolucionário. Esse estado será duradouro ou temporário? Inclino-me pela segunda hipótese, pois estamos tão longe como sempre estivemos da solução à causa fundamental do impulso revolucionário. Essa causa não é, como se diz em interpretações convencionais de Guevara, uma espécie de modismo cultural como o rock ou as drogas. Na raiz da revolução, está a inconformidade diante da injustiça, a recusa da resignação ante o mundo tal qual é, o desejo de mudar a vida. Isso só pode se fazer por meio da revolução ou da reforma, mas uma precisa da outra como nós precisamos de luz e de água.
Muito melhor do que em comentários superficiais, um livro que capta admiravelmente o verdadeiro sentido do sacrifício de Che e de tantos outros é "Che Guevara e a Luta Revolucionária na Bolívia", de Luiz Bernardo Pericás, edição Xamã. Pesquisa original, baseada em parte em entrevistas com protagonistas diretos, com riqueza de informações e julgamentos equilibrados, a obra ajuda-nos a compreender a história boliviana recente e esclarece o significado real do mito revolucionário. Dela transcrevo a citação do pensador peruano Mariátegui que sugere por que a revolução não morre com os revolucionários: "A força dos revolucionários (...) está em sua fé, em sua paixão, em sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do mito (...). Os motivos religiosos se transferiram do céu para a terra. Não são divinos; são humanos, são sociais".

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