São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Caetano e São Paulo

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Um aspecto periférico de "Verdade Tropical", o catatau memorialístico de Caetano Veloso, que chega às livrarias no próximo sábado, é a ambiguidade que parece atravessar suas relações com São Paulo.
A cidade surge frequentemente no livro como uma espécie de exceção ao Brasil -um estranho encrave do Sudeste, onde as pessoas são mais ou menos ingênuas, o samba não vigora, fala-se sempre sob influência italiana e os costumes seguem um código estrito imposto pela cultura dos imigrantes.
Nada disso poderia ser considerado uma completa mentira, embora tudo isso não seja uma inteira verdade e não deva, sob pena do preconceito, reiterar a idéia corrente de que a presença de São Paulo é uma anomalia na construção de uma imagem grandiosa e prazerosa do Brasil -cabendo-lhe apenas os aspectos do "trabalho" ou do "progresso".
O tropicalismo, com suas utopias sobre o país, seria impensável (como constata-se, afinal, na leitura do livro, e já se ouviu em "Sampa") sem o concurso de São Paulo.
O movimento simplesmente não existiria sem José Agrippino de Paula, sem Mutantes, sem Rita Lee, sem Rogério Duprat, sem Julio Medaglia, sem José Celso Martinez Corrêa, sem os poetas concretos e, last, but not least, sem Oswald de Andrade.
É sempre mais fácil perceber em São Paulo aquilo que ela tem de incongruente com o "Brasil", deixando-se à sombra o que guarda de semelhante. E o Brasil, tal como o pensamos modernamente, é, em larguíssima medida, uma construção de paulistas, de Caio Prado Jr. a Sérgio Buarque de Holanda, de Mário e Oswald de Andrade a Antonio Candido.
Caetano, obviamente, não desdenha da cidade que o acolheu, mas parece sempre, em suas homenagens, não resistir à tentação de manifestar restrições.
Provavelmente porque São Paulo não se deixou contaminar por Getúlio Vargas, colocando-se um tanto à margem, por isso mesmo, do processo de transformação do samba em emblema da nacionalidade -foi chamada, como é sabido, de seu "túmulo".
Os paulistas, sempre pintados como operosos e sem humor (a pior forma de solidão é sua companhia, repetia Nelson Rodrigues), carregam, aos olhos do Rio e da Bahia, uma espécie de déficit musical histórico, num país em que, estranhamente, tudo parece ser pensado para virar canção.
É natural que esse "avesso" da brasilidade não possa servir de espelho para um Narciso músico baiano -ainda que sem ele não pudesse montar a equação que montou.

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