São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Nuvem por Juno

LUCIANO COUTINHO

O debate a respeito da tendência à desindustrialização (e à desnacionalização) determinada pela dupla juro alto-câmbio sobrevalorizado fica empobrecido se esta for entendida como um perde-ganha absoluto de fechamento versus abertura de fábricas.
Na etapa em curso de rápida transformação tecnológica, o avanço da industrialização deveria ser necessariamente compreendido como um processo de desenvolvimento da indústria manufatureira, com aumento do valor agregado no país combinado com inovação técnica endógena, sob a forma de criação de novos produtos, aperfeiçoamento de processos e sistemas de gestão. Isso significa que o complexo eletrônico deveria ter um papel dinâmico relevante, que a matriz de relações interindustriais deveria estar acumulando valor agregado e que os nossos grupos empresariais deveriam estar ganhando porte e competência para atuarem como "players" globais.
Uma parte da equipe econômica governamental, preocupada com a sustentabilidade do déficit externo pós-privatização, vem se movendo na direção de uma política melhor articulada de fomento industrial. Cumprindo o dever de ofício -de mostrar que a situação está sob controle-, vem insistindo na tese de que a indústria passa por um momento difícil e doloroso de reestruturação, mas emergirá -dentro de dois ou três anos- ajustada e competitiva.
O grande déficit comercial atualmente gerado pelo setor manufatureiro seria um fenômeno transitório e reversível. Um novo ciclo de investimento industrial e em infra-estrutura acarretaria ganhos de competitividade suficientemente poderosos para viabilizar uma inversão na tendência de ampliação do déficit comercial. As exportações começariam a se expandir mais rapidamente, passando para 8% a.a. e depois para perto de 12% a.a. As importações, por sua vez, cresceriam mais lentamente, reduzindo-se o forte ritmo que vem sendo observado desde que a economia retomou a expansão do nível de atividade, em meados de 1996. Mas se essas expectativas otimistas não se revelarem bem fundamentadas, a trajetória econômica tende a ser de risco elevado -vulnerável a mudanças no quadro financeiro global e altamente precária depois que a privatização se exaurir.
Compreendido em sua correta acepção contemporânea, o processo de industrialização não parece estar avançando (e sim retrocedendo) em face das seguintes tendências e características:
1) fragilização competitiva da indústria em todos os complexos industriais de alto valor agregado e conteúdo tecnológico (especialmente o complexo eletrônico e o setor de bens de capital), com preservação da competitividade apenas em setores produtores de "commodities" de elevada escala de produção, baixo valor agregado, intensivas em recursos naturais, insumos agrícolas ou energia;
2) debilidade estratégica e reduzido tamanho dos grandes grupos empresariais brasileiros, face ao que seria requerido para atuarem como atores pró-ativos no plano global;
3) enfraquecimento das empresas nacionais (inclusive das que possuíam excelência gerencial e tecnológica) em todos os setores manufatureiros complexos, de alto valor agregado, processo evidenciado pelo rápido movimento recente de desnacionalização (e.g. eletrodomésticos, autopeças);
4) permanência da retração da base doméstica de financiamento de longo prazo, o que onera os custos de capital e obriga à dependência do endividamento externo para alavancar a acumulação.
Não se deve cair na ilusão de que a atual combinação câmbio-juros teria cessado de exercer efeitos desestimuladores à agregação de valor industrial no país (com desincentivo à exportação manufatureira e forte incentivo à importação). Essa impressão ilusória deriva do fato de que, nas fases de desaquecimento da economia, o crescimento das importações se atenua (estabilizando-se, aparentemente, a participação destas sobre o PIB), sem se atentar para o movimento contrário -qual seja, quando a economia cresce, as importações se excitam elasticamente, fazendo subir o seu peso sobre o produto.
As políticas de fomento improvisadas até o presente não vêm sendo suficientes para induzir inversões maciças, sem a ajuda de pesados e insanos incentivos fiscais estaduais. Esse tem sido, por exemplo, o caso do setor automobilístico, cujos significativos investimentos vêm criando novas linhas de produtos, mas com expressiva redução do valor agregado local. Seja escusado exemplificar que se a produção de veículos dobrar de 1,5 milhão de unidades/ano para 3,0 milhões, mas o índice de valor agregado no país cair de quase 100% para 50%, estaremos, em tese, produzindo o mesmo valor econômico. Essa tem sido a configuração dos investimentos recentes, produzindo o mesmo valor econômico. Essa tem sido a configuração dos investimentos recentes nos setores mais sofisticados, de elevado grau de agregação de valor e maior dinamismo inovacional -como é o caso do complexo eletrônico.
Apesar dos esforços meritórios da atual política de fomento no sentido de adensar as cadeias industriais (e.g. caso dos cinescópios), as variáveis macroeconômicas empurram as decisões microeconômicas na direção contrária. Prova disso é o enorme e crescente déficit comercial na área de eletrônicos e bens de capital, que vai ultrapassar a marca de US$ 16 bilhões em 97.
O atual ciclo de investimentos vem apenas reiterando o padrão de especialização competitiva que a economia brasileira já havia logrado alcançar nos anos 70. Nesse sentido, poder-se-ia precisamente classificar o período pós-estabilização como uma etapa de especialização regressiva do ponto de vista industrial: somos, cada vez mais, importadores de tudo o que é sofisticado e exportadores de produtos de baixo valor agregado.
Para neutralizar essa tendência seria necessário agir muito mais incisivamente e fortalecer a coordenação da política de desenvolvimento industrial no mais alto nível do governo, incluindo o Ministério da Fazenda, o Cade e o Banco Central. É urgente estancar a desnacionalização e fortalecer os grupos nacionais nos setores competitivos de "commodities", pois o Brasil precisa dispor de "global players" para poder avançar mais industrial e tecnologicamente (esse é, por exemplo, o caso da petroquímica, do setor de papel e celulose, do agribusiness, da siderurgia etc).
É, também, indispensável e urgente que se formulem estratégias para os setores de elevado dinamismo tecnológico, notadamente para o complexo-eletrônico e para o setor de bens de capital. Tudo isso exige a compreensão de que a globalização não é um fenômeno espontaneamente benigno para os países em desenvolvimento da periferia. Ela certamente cria possibilidades, mas apenas para as sociedades que têm coesão, estratégia, grupos empresariais fortes e Estado eficiente para delas tirar proveito.

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